terça-feira, 16 de dezembro de 2008

A imagem atrás do espelho

Estávamos lá. Eu e você. Sozinhos. Em uma grande sala. Com um espelho imenso de um lado. A minha imagem atrás do espelho. Você olhava para ela. Estava apaixonada pela minha imagem. Eu estava atrás de você. Eu falava, mas você não escutava. Não conseguia me aproximar. Não consegui te tocar. Tão perto. Tão longe. Atrás de mim, uma porta. Onde ela vai dar? Você não quer saber. Não sabe que ela existe. Colocava suas mãos no frio vidro do espelho. Deslizava suas mãos pelo vidro todo. Jogava seu corpo contra o espelho. O que você queria? Eu olhava tudo aquilo. Ela se afastou. A minha imagem no espelho disse algumas palavras.
- O que você vê?
- A beleza da sua imagem. Você é bonito, tem olhos claros, você não é gordo. Sua pele é branquinha. Eu gosto de você.

A beleza da minha imagem? Eu sou bonito. O juiz bateu o martelo, decidindo. Eu sou feio. O juiz bateu o martelo, decidindo. E agora? O que vamos fazer? Se você é bonito, sorte a sua. As mulheres se encantaram com sua beleza. Elas vão se aproximar apreciando o vaso de porcelana perfeitamente construído pelo o mais habilidoso dos artesãos. Para isso, passe creme para pele, ele vai tirar todas as imperfeições do seu rosto, e claro, faça a barba. Se você for feio, azar o seu. Quem é que vai se aproximar? Talvez se você pagar. Ou se você tiver dinheiro, muito dinheiro, faça alterações no seu rosto, da forma que quiser. Mude o nariz. Mude a posição dos olhos. Mude os lábios de sua boca. Tire suas bochechas. Construa uma imagem para me impressionar. Você precisa disso. Mas se o homem não conseguir tocar seu violão? Se você é feio, mas tem olhos claros, você tem mais chances. Olhos azuis, verdes estão sempre em alta. Sempre chamam a atenção. Que tal colocar uma lente colorida? Não saia de casa com olhos comuns. Você tem que se esforçar mais, para me agradar. Eu sou gordo. Existe malhação, sabia? Tem uma academia em cada esquina hoje em dia. Ou então acorde cedo, e corra pelo seu bairro por um tempo. É claro, só exercícios não adianta. Você precisa de dieta, não é só comer de uma forma saudável, mas sim uma dieta das brabas. Você pode seguir uma dieta, porém vai ser difícil, demora muito tempo. Teste várias dietas para ver qual é a da sua preferência. Se quiser, fique sem comer por dias, ou coma e vomite. Ainda não está magro o suficiente? Você tem que ser esforçar mais para me agradar. Mas se o homem não conseguir tocar seu violão? Você é branco, ou seja, sua pele não é escura o suficiente. Você é negro, ou seja, sua pele não é clara o bastante. Não seremos hipócritas para não enxergarmos a diferença. Nossos olhos ainda não estão acostumados com uma pele mais escura. Então a beleza está enraizada nas pessoas com pele mais clara. Mas, isso depende, ter uma pele bronzeada tem seu charme, e sua beleza. Branco e preto, então essas cores é que definem a beleza? Eu gosto mais do azul. Tem alguém azul, ae? Será que também vêem alguma cor na tristeza? Ou na felicidade? Se elas tiverem cores, nós iremos julgá-las também? Mas, no final, o homem não consegue tocar seu violão. Então o que mais você vai fazer para eu gostar de você? A minha imagem é apenas uma construção do seu julgamento? Tudo isso, antes mesmo, de dizermos “oi” um para o outro.

Mas você não me escuta. Nenhuma palavra. Ainda estamos naquela sala. O que posso fazer? Você não olha para mim. Não olha para mim. Não olha para trás. Tem uma pedra do lado do meu pé. Abaixo com cuidado. Segura firme a pedra. Só assim chamarei sua atenção. Arremesso a pedra no espelho com toda a minha força. As rachaduras começam a aparecer. E vão caminhando por todo o espelho. Pedaços começam a cair. Vários pedaços começam a cair. Você começa a andar para trás, tentando fugir dos pedaços que caem. Do espelho, só os pedaços. Você caminha, lentamente, até esbarrar em mim, e virar para trás. Nós nos olhamos.
- Oi. – eu digo.
- Oi – ela responde.
- Quero que você veja uma coisa.
- Tudo bem.
Pego a mão dela, vou em direção a porta. Com a outra mão, eu abro.
- O que você vê agora? – eu pergunto.
Eu vejo uma praia. O mar, a areia, está tudo aqui. Tem um homem, sentado em uma pedra, jogando palavras ao vento, que logo depois caem no mar. Ele toca um violão, mas não consigo ouvir a melodia. Então me aproximo. Ainda não escuto. Agora percebo. Ele está fingindo que está tocando. Seus dedos não encostam nas cordas do violão. Ele olha para mim. Vejo seu rosto triste.
- O que você faz aqui? – ele pergunta.
- Eu não sei.
- Aqui é lindo, não é? - ele comenta.
- É. Só falta uma música. Porque não toca o violão?
- Eu estou tocando.
- É? Então porque eu não escuto nada.
- Era para você escutar?
- Sim.
- Eu não sabia.
- Posso tentar?
- Claro.
A menina pega o violão. Encosta de leve seus dedos nas cordas do violão. Ela começa a tocar, apenas toca. A melodia surge. O homem fica surpreso. Nunca tinha escutado alguma coisa parecida. A menina começou a jogar palavras ao vento. Mas agora, elas começavam a voar. Preencheram o céu. O homem olhava tudo aquilo. Isso o entusiasmou. Ele começou a jogar palavras ao vento, que também, voaram para o céu. Os dois jogaram palavras ao vento a noite toda, se divertiam com elas no céu. Para onde será que elas vão? Não sei, o que importa é que elas estão voando. Sabe, eu gosto daqui. Tudo isso, apenas depois, de dizermos “oi” um para o outro.

domingo, 14 de dezembro de 2008

Poemas miseráveis

De quantos poemas eu preciso para escrever sobre a solidão? Eu preciso de muitos. Preciso escrever um livro de poemas. A editora quer que eu entregue no final do mês. O tempo não me preocupa. O problema é a solidão como única fonte de inspiração. O medo de reconhecer que está sozinho, olhar para os lados e não ver ninguém. Rafael sentado na sua poltrona de alguns muitos reais, todo estabanado. Seu corpo está solto, não tem controle sobre ele. Na sua mão esquerda um cigarro apagado. A preguiça é vencida. As mãos na poltrona, os pés no chão, o corpo levanta. Alguns metros se passam. Agarra o isqueiro, que estava em cima do balcão do bar (um pequeno bar com suas bebidas preferidas, de vodka a cachaça) com uma das mãos, faz um movimento pra que o fogo apareça. Acende o cigarro. Solta aquela primeira fumaça. Aquela do alívio. Coloca o cigarro no cinzeiro que está em cima da mesinha da sala. Olha para o bar. Não sabe qual das garrafas escolher. Coça o rosto. Indecisão tem tomado conta da minha vida. Pelo menos uma bebida eu posso escolher. A vontade era de tomar uma cachaça, mas não tinha uma garrafa. Pegou a de um vinho chileno. Tinha ganhado de presente de alguém, porém não se lembrava de quem. Com um saca-rolha abre a garrafa. Entorna para dentro do estomago. Alguns goles. Retorna para cigarro. Algumas tragadas. De novo no cinzeiro. Outros goles. Do apartamento, dava para ver os carros passando e as pessoas andando. Falta ar aqui. A janela é aberta. De algum lugar à vontade de vomitar chega. A garrafa de vinho é bruscamente colocada em cima da mesinha da sala. A porta do banheiro é aberta abruptamente. A respiração fica ofegante . Está faltando ar aqui. Olha para o espelho. Joga uma água no rosto. Sente o vomito passar pela sua garganta, invadir sua boca e sair. A pia fica imunda. O que está acontecendo comigo? Há quantos dias eu não durmo? Porque você me deixou? Eu pensei que algumas coisas durassem para sempre. Porque não durariam? Você não sabe o que deixou. Sabe o que você me deixou? Palavras, palavras e mais palavras. Poemas miseráveis. Não é culpa sua. Mas está acontecendo. Eu não consigo sair disso. Parece que estou preso. Eu estou doente. Porque você me deixou? Preciso de uma cachaça. Já era noite.

Meu colchão de papelão não estava confortável esta noite. Preciso levantar. Suas mãos encontram uma caixa cheia de moedas. São moedas ganhadas pela esmola e que foram cuidadosamente guardadas para essa noite. Suas roupas sujas, sua barba grande não enganam ninguém. Era um morador de rua. Mas acho que isso não importava mais. Hoje vou encontrar com a mulher que amo. Ninguém sabe da felicidade que estou sentindo. Provavelmente não conseguirei jantar hoje, mas essa limitação da minha vida não vai me abalar. Cássio andava pelas ruas estreitas. Parou em uma padaria na esquina.
- Me da uma branquinha, Miguel! Que hoje eu estou explodindo!
- Que tanta agitação é essa?
O copo já estava em cima do balcão. Miguel manuseava a garrafa de cachaça lentamente deixando o líquido escorrer para o copo.
- Eu vou encontrar a mulher hoje.
- Entendi então.
- Será que você pode me arranjar uma janta?
Miguel olha para Cássio com uma expressão desconfiada.
- Está bom Cássio. Passe aqui depois.
Tomou a cachaça em uma golada.
- Pode por outra dose. – diz Cássio.
- Outra?
- Sim, eu preciso.
- Está bem.
Miguel encheu o copo. De novo tomou com uma golada.
- Obrigado Miguel.
- Tranqüilo, vai com Deus.
Cássio acena se despedindo. Andava seguro de si e do que ia fazer. Olhou de longe. Lá estava ela. Estava em uma esquina junto com uma amiga. Está na hora de falar com ela. Andou confiante. Chegou perto.
- Oi.
- Oi. Como vai velho homem?
- Eu não estou tão velho assim. Vou bem, e você?
- Estou bem também.
- Que bom.
- Qual seu nome? – pergunta Cássio.
- Sofia. Então o que você tem ai? – ela pergunta.
- Amor. – Ele responde. – com um sorriso no rosto.
- Eu não preciso de amor. Eu só preciso de dinheiro. Eu tenho um filho para sustentar. Olha, se você não quer fazer nada, não gaste meu tempo. Tenho outros clientes a vista.
- Eu sei. Eu quero. Eu tenho dinheiro. – Sacode as moedinhas na caixinha.
- Está bem. Então vamos para um quarto.
Em frente da onde eles estavam tinha um motel barato.
- Eu quero um quarto. – diz Cássio.
- Pode ficar com o segundo a direita. Não saia sem pagar, velho.
- Não, claro que não.
Os dois entram no quarto. A expectativa de Cássio era grande. Seu amor. Diante dos seus olhos. Despida. Não dava para acreditar, faria amor depois de tantos anos. Mas ninguém tinha avisado que o inverno tinha chegado. Não nevava quando eu sonhava. Tocar seu corpo gelado, não era o que eu esperava. Olhar para o seu rosto sem expressão, não era o que eu queria. O calor do meu corpo se foi. O frio tomou conta de mim. A realidade do momento pode destruir muitas coisas. Não era para ser assim. Eu não agüentava mais. Já torcia para acabar. Uma tristeza. Uma decepção. Um vazio.
- Então você me deve dinheiro, velho. – diz Sofia.
- Dinheiro, realmente é a única coisa que vale o que fizemos.
- Como assim?
- Você adicionou mais infelicidade nessa vida miserável. Obrigado. – Encheu a mão com moedas e colocou na mão dela.
Saiu do quarto, sem dizer mais nada. De novo pegou algumas moedas e entregou para o dono do hotel na recepção. A única coisa que ele precisava agora era uma cachaça.

Cássio não pensava em nada. Que tudo vá para o inferno. Eu não quero mais saber de nada. Andava, andava. Era a única coisa que podia fazer naquele momento. E nesse momento que a vida perde todo sentido. Se for para ser assim, e melhor não ser. E nessas horas que a morte consegue ser uma opção. Porque não? Acho que posso me contentar em encher a cara de cachaça. Já que não tem ninguém, o álcool pode me consolar. Depois de tanto andar, avista um bar. Senta na cadeira perto do balcão.
- O que você quer? – diz o atendente.
- Traz um uma dose de cachaça.
- Você tem dinheiro?
- Tenho – mostrou a caixa com as moedas.
- Vou pegar. – finaliza o atendente.
Cássio brincava com uma moeda, quando olhou para o lado. Tinha um homem. Bem vestido. Com uma garrafa de cachaça em uma das mãos enchendo um copo.
- As coisas devem estar complicadas para você. Com uma garrafa de cachaça... – diz Cássio.
- Realmente estão muito ruins. Mas você não está com uma cara de que está feliz. – responde Rafael.
- Também está ruim para mim.
- Então se aproxime. Vamos acabar com essa garrafa antes de acabarmos com nossas vidas.
- Claro.
Rafael encheu o copo de Cássio.
- Você mora onde? – pergunta Rafael.
- Na rua. Em alguns cantos.
- Entendo. Sua vida deve ser difícil, não me admira você estar aqui.
- Eu não estou aqui por causa disso. Ter uma vida sem muitos confortos materiais é complicada, ainda mais para um velho como eu.
- Mas você não é velho.
- Obrigado você é o primeiro que diz isso.
- Então o que te levou aqui?
- Eu não quero falar sobre isso. Mas e você. Parece ter uma vida luxuosa.
- Das minhas condições não posso reclamar, mas como você, não é por isso que eu estou aqui.
- Vai me dizer porque está aqui?
- Eu não quero falar sobre isso.
- Tudo bem. Então o que você faz?
- Eu sou escritor, principalmente escrevo poemas.
- Nossa, um poeta!
- Não precisa dessa exaltação. E você já fez alguma coisa?
- Eu já fui carteiro.
- Sério?
- Sim, eu adorava. Entregava cartas de porta em porta. Conhecia pessoas. O salário não era lá essas coisas, mas...
- Eu sei como é. Mas como chegou nesse...
- Nesse estado de pobreza? Fui mandado embora, não tenho família. Fui gastando minhas economias até vender minha casa.
- Eu compreendo. Quando eu tinha 14 anos, comecei a trabalhar. Meu pai tinha sido demitido também. Então comecei a trabalhar para ajudar..
De goles em goles, a garrafa já estava no fim.
- Parece que a garrafa já está acabando. Só tem um gole para você e um para mim. – diz Rafael.
Rafael serviu os dois. Rapidamente tomaram a última cachaça.
- Eu vou embora. – diz Rafael
- Posso ir com você? Não tenho nada para fazer. – pergunta Cássio.
- Claro.
Os dois andavam, meio cambaleando. Estavam sobre o efeito do álcool. Meio tontos meio lúcidos. Andavam. Ficaram calados. Um do lado do outro. Até que ouviram gritos bem altos.
- Mas o que foi isso? – perguntou Cássio.
- Não sei. – respondeu Rafael.
Continuaram a andar. Cássio avistou uma montanha russa. E de novo os gritos ecoavam.
- Então é isso. – disse Cássio.
- Um parque de diversões. – disse Rafael.
Os dois se olharam por instante.
- Rafael, vamos na montanha russa? – pergunta Cássio.
- É melhor não. Eu não estou muito bem.
- E quando que você está bem?
- Mas acho que vou vomitar.
- Não importa.
- Eu tenho que te confessar tenho medo de altura. – diz Rafael.
- Deixa esse medo em algum canto. – responde Cássio.
- É... Sabe, estou cansando de escrever sobre ele.
- Então vamos!
- Está bem.
Entraram no parque. Muitas pessoas. Muitas crianças. Correndo de um lado para outro. Todos alegres. Risos por todos os lados. Os dois entraram na fila. E quando perceberam já era a vez deles. Subiram uma escada. Ficaram em frente aos carros.
- Não sei se quero fazer isso. – diz Rafael.
- Agora que você quer desistir?
Rafael entra no carro. Cássio senta-se do seu lado. O nervosismo toma conta de Rafael, amenizado pelo álcool em seu sangue, mas presente. Os carros começaram a subir. Devagar. Rafael não olha para baixo. Os carros sobem devagar. Será que vou agüentar a decida? Os carros sobem devagar. O que pode acontecer? Os carros chegam no topo. Agora, não está nas minhas mãos. Os carros descem. O vento no meu rosto. Uma vontade de vomitar. Os olhos se fecham.
Acordo. Dormia em cima do volante. Estou no meu carro. O que estou fazendo aqui? Abro a porta. Saio do carro. Olho para os lados. Nenhum carro vem. De lugar nenhum. Um prédio grande a minha frente. É um hospital!
- Não! Não pode ser. - Os carros vão a toda velocidade.
Estou na recepção do hospital. O que estou fazendo aqui? Discuto com a mulher que me antende. Saio correndo. Entro no elevador. Estou em um corredor. Corro. Procuro um quarto. Acho. Espio pela porta aberta. Minha mulher. Cheia de tubos. Eu me aproximo. Ela me olha, e estica a mão. Eu a seguro.
- Não! Eu quero sair daqui! Droga! - Os carros fazem “loopings” e ficam de cabeça para baixo.
Estou sentado em um banco fora do quarto. As palmas da minha mãos estão encostadas no meu rosto. Estou chorando.
- Não!
Os carros param. Todos saem da montanha russa. Rafael fica meio atordoado.
- Você está bem? – pergunta Cássio.
- Estou. – responde Rafael.
- Dessa vez, eu vou para casa. Tem algum lugar para ir? – pergunta Rafael.
- Não. – responde Cássio.
- Então vamos lá para casa.
- Está bem.

Chegaram no apartamento. Rafael sentou na sua poltrona de costume. Cássio entrou timidamente.
- Se quiser pode tomar um banho. – comenta Rafael.
- Posso mesmo?
- Pode.
- Obrigado.
Cássio entra e no banheiro e fecha a porta.
- Espera. Vou te dar alguma roupa.
- Obrigado.
Cássio pegou as roupas e trancou o banheiro. Rafael voltou a sentar na poltrona, mas agora com um cigarro aceso na mão. Apenas olhava para o nada. Cássio termina.
- Posso usar seu barbeador? – pergunta Cássio.
- Pode.
Cássio sai do banheiro de cara nova. Diferente.
- Obrigado pelas roupas – agradece novamente.
- Tudo bem.
Cássio senta no sofá. Fica olhando para o teto.
- A vida está meio parada. – resmunga Rafael.
- É verdade.
- Então porque estava no bar hoje? – pergunta Rafael.
- Quer mesmo saber?
- Quero.
- Eu amo uma mulher, mas não sei como fazer que ela entenda isso.
- Nossa. Porque você não escreve um poema para ela?
- Eu não sou poeta. Você é. Você entende.
- Se eu sou poeta, não quer dizer que você não seja. Poeta é um título que a sociedade me dá, isso não importa. Todas as pessoas são poetas, algumas mostram para o mundo, outras guardam para si mesmas. Porque você não tenta?
- Eu não sei por onde começar.
- Eu sei como é... Respire fundo. Feche os olhos. Puxe a inspiração, como se estivesse puxando a fumaça de um cigarro. Imagine. Para a folha de papel você pode confessar. Deixe os sentimentos transbordarem para a folha de papel, passando por cada linha. As palavras vão aparecer na sua cabeça, passar pelo seu corpo, até chegar na sua mão. Não tenha medos dela, escreva cada uma. Aqui, eu tenho um caderno e um lápis. Eles são seus. Mostre o que você quiser neles.
- Obrigado. Vou tentar.
Cássio sentou em uma cadeira. Colocou o caderno em cima da escrivaninha. Começou a escrever.
- Eu vou dormir. Você pode dormir no sofá. Qualquer coisa pode me falar. Até amanhã.
- Está bem. Obrigado.

A claridade batia no rosto de Rafael, fazendo-o acordar. Ele se espreguiçou. Levantou. Andou até a sala. Cássio continuava escrevendo.
- Você ainda está escrevendo? Não dormiu?
- Não dormi. Era tanta coisa, não pude parar.
- Posso ver?
- Pode.
- Você escreveu quase o caderno inteiro. Impressionante.
- Só falta algumas palavras.
- Continue então.
Enquanto Cássio terminava de escrever, Rafael tomava café.
- Quer alguma coisa? – perguntou Rafael.
- Daqui a pouco.
- Está bem.
Depois de alguns minutos.
- Terminei. Posso comer uma torrada?
- Claro. Tome leite também.
- Obrigado.
- Posso ler? – pergunta Rafael.
- Pode.
Enquanto Cássio tomava café, Rafael lia as palavras de Cássio.
- Eu adorei. – comenta Rafael.
Cássio sentava no sofá com leve sorriso no rosto. Como era bom escrever aquilo. Como era bom...
Rafael entrega o caderno para Cássio e senta na sua poltrona.
- Então, só está faltando uma coisa. – diz Cássio.
- O que? – pergunta Rafael.
- Você me dizer porque estava naquele bar.
- Bem... É difícil falar sobre isso.
- Tudo bem, se você não quiser dizer.
- Não, eu preciso falar. Então... A minha esposa morreu de câncer há dois anos.
- Sinto muito.
- O pior é que nós temos um filho. Eu não o vejo desde a morte dela. Ele se parece muito com a mãe.
- Nossa. Você não acha que já está na hora de encarar e ver seu filho?
- Eu sei, mas é difícil.
- Eu sei que é difícil, mas é o seu filho. Até quando você vai ficar aqui parado?

Até quando eu vou ficar aqui parado? Só eu estou aqui. Um deserto imenso. Como podemos enfrentar as barreiras que nós mesmos criamos? Como enfrentar as muralhas criadas pelas dores e medos? Como caminhar através das areias do orgulho? É um caminho difícil. É árduo. Dar o primeiro passo. Pisar nessa areia. Afundar seu pé nela. Dar vários passos. Da onde sai à força para dar esse passo?
- Bom... Eu já vou. – diz Cássio. – Quero mostrar o meu caderno para ela.
- Entendo. E boa sorte.
- Vai encontrar com seu filho?
- Eu não sei.
- Até quando não vai saber?
Rafael baixou a cabeça.
- Bom... Boa sorte para você e obrigado por tudo. - diz Cássio.
- De nada.
Cássio desce as escadas. Rafael fecha a porta. Um porta-retratos virado. Cuidadosamente, o pega. Na foto, ele, sua mulher, e seu filho. Não conseguia lembrar daquele dia. Eu não consigo lembrar.

Cássio ia pela rua. Com os dois braços segurando o caderno com seus poemas. Na sua mente só a imagem dela. Procurava, procurava. Entre ruas e becos. Até que avistou sua amiga.
- Oi, sabe onde Sofia está?
Olhou mais atentamente para Cássio.
- Você é aquele velho. Está diferente. Mais elegante e bonito.
- Obrigado.
- Ela está na casa dela.
- Onde fica?
- Não é muito longe. Eu te levo lá
- Obrigado.
Os dois entraram na primeira rua, seguem e dobraram na próxima esquina.
- É aqui. Eu já vou indo. Adeus.
- Obrigado, de novo. Adeus.
Uma casinha bem velha. Mas bem cuidada. Com um jardim simples. Mas bem cuidado. Cássio bateu palmas.
- Alguém em casa? – gritou.
Sofia apareceu. Foi até o jardim e abriu a porta. Olhou atentamente para Cássio.
- Você é aquele velho. Nossa, você mudou. Que roupa é essa? Ficou rico?
- Não, eu ganhei.
- Sei... Então o que você quer?
- O seu amor.
- Eu não tenho nenhum para dar.
- É mesmo? Como você consegue?
- Eu não sei.
- Tudo bem. Isso é para você.
- O que é?
- Um caderno. Fiquei a madrugada toda escrevendo esses poemas. Todos esses poemas são seus.
- Meus?
- Sim.
- Mas para que eu vou querer isso?
- Depois que você ler a última palavra. Talvez descubra.
Sofia abriu o caderno. Tinha um título. Efeito Borboleta...
- Efeito Borboleta? O que é isso?
- Todos esses poemas são parte disso.
- Sim, mas o que é Efeito Borboleta?
- É quando o bater das asas da borboleta escondida em seus olhos cria um furacão dentro de mim.
Cássio, na mesma hora, vira as costas e caminha. Enquanto que Sofia segura o caderno em volta de seus braços e olha para Cássio partindo.


Rafael estava em seu carro. Parado. Em frente à casa dos avós do seu filho, que tomavam conta dele. Então vou continuar parado? Rafael sai do carro. Caminha. Bate na porta. Seu filho atende.
- Pai?
- Sou eu, Jonas.
Os dois ficaram imóveis.
- Onde você esteve?
- Eu precisei me ausentar por um tempo, me desculpe.
- Tudo bem, pai.
- Você quer ir na montanha russa? – pergunta Rafael.
- Que? Eu já tenho 18 anos, pai.
- Não importa. Vamos?
Jonas ficou pensativo, mas aceitou, não via o pai há muito tempo.
- Tudo bem.
Rafael esperava, enquanto Jonas se arrumava.
- Bom, estou pronto. – diz Jonas.
- Então vamos.
Os dois entraram no carro. Rafael deu a partida. No caminho.
- Pai, porque você sumiu depois que a mamãe morreu?
- Eu tive medo, filho.
- Eu também. Mas você não estava aqui para ver.
- É... – uma secura invadia a boca de Rafael.
Permaneceram calados desde então. Chagaram no parque. Enfrentaram a fila e ficaram enfrente aos carros da montanha russa. Rafael deu um leve sorriso para Jonas.
- Então vamos encarar, né? – diz Rafael.
- É, vamos.
Os dois sentaram no carro. O carro começou a se mover. O nervosismo penetrava em Rafael.
- Jonas, será que você pode segurar minha mão. Eu tenho medo de altura.
- Está bem.
Jonas segurou a mão de Rafael no instante em que os carros caíram em alta velocidade. O medo. A sensação de vomitar. Os olhos se fecham.
Jonas venha aqui! Eu vou te pegar! Jonas jogava água da mangueira em mim. Eu vou te pegar, Jonas! Corri em todos os cantos, mas o moleque era rápido. Rindo de mim. Ele corria. Eu ria de mim. Eu corria. Eu vou te pegar! Ele não conseguiu fugir. Agarrei, e nós dois caímos no chão em gargalhadas. Olhei para ele. Eu não sei o que aconteceu, apenas senti vontade de abraçá-lo. E o fiz. Nós dois caminhávamos. Sua mãe apareceu. Estava sorrindo. Sabe o que eu tenho aqui? Ela perguntou. Ela mostrou sua mão delicadamente fechada. O que você tem ai? Perguntamos. Ela veio aqui para ver vocês. Abriu lentamente a mão. Uma borboleta. Batia as asas. Os três se olharam.
O carro parou, a volta acabou. Mas Jonas ainda segurava a mão de Rafael, agora mais fortemente.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Quem sou eu? *

O mar. Eu vejo o mar, sem fim e sem horizontes. As águas do mar molham, delicadamente, meus pés descalços. Elas me convidam para me juntar a elas. A areia. Caindo das minhas mãos lentamente, fria, em uma tarde fresca da primavera. Uma imensa floresta. Atrás de mim. Várias árvores juntas, em harmonia, quase me abraçando. O sol. Está bem fraco hoje, seus raios solares não machucam minha pele, nem a minha cabeça. Na verdade, eles me tocam suavemente. Como dois amantes, segundos antes, de se beijarem. O vento. Conduz o equilíbrio dos elementos nesse dia como qualquer outro. Eu vejo o mar. À vontade de nadar, ainda vai me fazer enlouquecer. Não importa, estou a poucos metros de mergulhar. O dia. Esses dias com o céu azul, não faz a gente lembrar, não faz a gente esquecer, nós só estamos ali. Nós ainda estamos ali. Respirando aquele dia. Dia que tomam conta de todos os nossos pensamentos. Mas nem todos os dias são assim. O tempo. Todos tentam prevê-lo, mas está sempre mudando. As águas do mar. Não estão mais calmas. Porque batem tão furiosamente nas rochas? Já não me aproximo mais. Já não nado mais hoje. A chuva. Os pingos molham meu rosto, passando por cada imperfeição. Em todo rosto, a expressão muda, uma tristeza vinda dos céus cai de repente em nós. Um furacão. Derruba todas as árvores atrás de mim. Quem vai me abraçar agora? Continua quebrando tudo, até garrafas de cerveja e lixeiras no meio da rua. Nessa hora, não dá para parar. Nada o faz parar. A areia. Minha mão não consegue tocá-la, quente, em um deserto ao sol do meio dia. O sol. Corri para a sombra, minha cabeça não vai agüentar esses fortes raios solares. Não quero que os meus sonhos derretam. E depois sejam levados pelo furacão que passa agora. Para onde será que eles irão? As sombras. Até que elas proporcionam um conforto momentâneo. O que seriam de mim sem elas agora? Não sei quando vou sair daqui. O dia. Porque nossos dias mudam tanto? A praia. Você vai correr para longe da praia. Mas à vontade de nadar nunca vai te abandonar. Quem sou eu? Sabe, nós não somos tão diferentes assim.

Debaixo dos lençóis, o relógio já marcava das seis da manha. Mais um dia de trabalho. Levantou. Antes de ir para o chuveiro, olho pelo espelho. Cabelo despenteado. Barba crescendo. Esfrego os olhos e passo uma água no rosto. O tempo está passando. Eu não sei porque, mas fico pronto rapidamente. Desço correndo. Minha mulher e meu filho estão me esperando. Os dois sorriem para mim.
- O que você vai querer de café da manhã? – ela pergunta.
- Um café com leite, por favor. – respondo.
- Claro!
- Filho, como vai a escola?
- Muito bem, sou o primeiro da classe.
- Menino inteligente. Esse é meu garoto! Depois da aula você vai poder brincar.
- Eu não quero. – responde o garoto.
- Não quer?
- Não.
Sem entender, pego o meu copo de café com leite. Corto o pão levemente e passo manteiga. Fico olhando os dois. Parecem bem. Parecem felizes.
- Quando voltar sua janta estará pronta, querido.
- Está bem – responde meio tonto.
Tinha terminado o café da manhã, e como sempre estava atrasado.
- Não esqueça da mala, querido!
- Obrigado.
Ela sempre lembra. Eu sempre esqueço. Saio de casa. Meu carro me espera. Olho para os lados. Os vizinhos sorriem e acenam. Parece a que estava tudo concordado entre eles..
- Bom dia, vizinho! – todos dizem.
- Bom dia a todos!
Eu entro no carro. Acho que vou pegar um engarrafamento. Não tenho escolha, apenas dirijo o carro. Como eu previa. Um congestionamento imenso. Porém, enquanto eu passava, todos me davam bom dia, e sorriam. Que coisa estranha. Parece uma encenação. Consigo chegar no trabalho. Eu não sei o que eu faço, mas devo descobrir. Cheguei atrasado. É um prédio enorme no centro da cidade. Subo alguns andares de elevador. Chego a uma sala imensa com várias pessoas trabalhando. O tempo para. Em câmera lenta vem chegando alguém. Um homem de terno. Ele deve ser meu chefe. O tempo acelera.
- Você chego atrasado mais uma vez.
- Desculpe...
- Tudo bem, não tem importância – responde com um sorriso no rosto.
Não é possível. Ele disse que está tudo bem. Era para eu ser demitido. Eu não entendo.
- Pode ir para seu escritório.
- Você pode me mostrar o caminho?
- O que deu em você? Não lembra? Eu vou te levar até lá.
- Eu não sei. Obrigado.
A minha sala é grande, cadeira confortável, mesa de uma madeira selecionada e computador parecendo bem potente. Mas, por alguma razão, eu não agüentava ficar ali. Não conseguia olhar mais para aquele computador, nem mais um segundo. Aquela sala estava me sufocando. Não fico mais aqui. É tudo muito estranho. Parece que não disseram como me comportar aqui. Eu vou embora. Saiu do prédio, sem falar com ninguém. Todos olham para mim. Será que eu fiquei louco? Não lembro o que vim fazer aqui. Não sei porque estou aqui. As pessoas só sorriem e acenam. Alguém passa na minha frente.
- Você está com fome, amigo? – alguém pergunta.
- Não. Obrigado.
Outro passa sorrindo.
- Está com frio? Precisa de um agasalho?
- Não. Mas obrigado.
Eles não me conhecem. Ninguém conhece ninguém, mas eles se tratam como se conhecessem. Todos muito atenciosos. Vou para casa. Pego o carro e acelero.
Abrindo a porta, coloco o primeiro pé em casa.
- Já chegou? Ainda não aprontei o seu jantar. Mas espere um pouco que ele vai estar pronto. – diz minha esposa.
- Mas está muito cedo.
- Ele logo estará pronto!
Parece que ela não escuta.
- Onde está o garoto?
- Está na escola, querido.
Eu não lembro o nome dele. Mas eu não sou o pai dele? O que está acontecendo? Também não sei o nome da minha esposa.
- Querida. Qual é o meu nome?
- Não posso responder essa pergunta, querido.
Ela não sabe?
- Qual é o nome do nosso filho?
- Junior.
O que está acontecendo? Eu não sei quem são essas pessoas. E parece que elas não sabem quem eu sou. Será que eu sei quem eu sou. Eu só sei meu nome. O mundo está girando muito rápido. Náuseas, tontura, e vomito. Droga!
Ela está olhando para mim e sorrindo. Será que ela não percebe o que está acontecendo aqui?
- Quando foi à primeira vez que nos beijamos?
- Não posso responder essa pergunta.
- Porque não?
- Não posso responder essa pergunta.
- Para de repetir isso! - Desculpe, não é você. Sou eu. – reflito.
Tem algo errado aqui. Não parece real. Não pode ser uma imitação da vida. Será que existe alguma coisa real aqui? Eu não agüento mais ficar aqui. Essas paredes estão me sufocando.
- O jantar está pronto.
- Eu não quero jantar. Você não faz outra coisa?
- Faço. Lavo, passo e arrumo a casa. Não sou a esposa que você sempre quis?
A expressão do meu rosto, não conseguirei descrever. Parece uma propaganda da tv, tentando vender o produto, falando suas supostas qualidades. Eu não consigo dizer nada. Eu saio de casa.
Quando olho para rua, vejo o meu filho vindo da escola. Meu filho. Por um minuto a minha cabeça esfria.
- Como foi na escola hoje?
- Foi divertido pai!
Vejo a inocência em suas palavras. Sinto-me bem, mas não posso deixar de perguntar.
- Qual é o meu nome?
- Não posso responder essa pergunta.
- Mas como? Como não sabe?
- Não posso responder essa pergunta.
Uma força chega até mim. Eu começo a correr.
- Pai! Para onde vai?
Eu paro.
- Meu lugar não é aqui. Antes me dê um abraço.
- Eu não sei fazer isso.
De novo, não consigo descrever a minha expressão. Mas as chaves do carro estão em minhas mãos. Ligo o carro. Olho pelo vidro. Minha esposa apareceu. Os dois estavam parados acenando e sorrindo.
- Tenha um bom dia no trabalho. – diz ela.
Eles não vão me deixar maluco. Eu preciso sair daqui. Dirigiu. Saiu da cidade. Pegou a estrada. A estrada era coberta pela floresta em seus lados. Começou a subir uma serra. Lá de cima, dava para ver o mar. No momento em que viu aquele imenso mar, uma grande vontade de nadar o consumiu. Estava confuso. Desnorteado. Mas nadar. Era isso o que ele queria.
Uma van preta estava seguindo-o. Quem são eles? O que eles querem? Começou a acelerar. A van aumentava a velocidade. Eles já estavam bem perto. Os dois carros ficaram juntos na beira do precipício. O mar estava calmo, mas meus nervos estavam altos. Se eu fechá-los os matarei. O que vou fazer? Eles tomaram a iniciativa e me fecharam. Um tranco forte. Mas não perdi o controle do carro. Eles tentaram de novo. Conseguia resistir. Mas na terceira, meu carro capotou. Estava machucado, sentia o sangue sair pela minha pele. Observei duas pessoas saindo da van preta. Um homem e uma mulher, os dois com uma roupa preta, bem “estilosa”. Eles se aproximaram
- Veja se ele está bem – diz a mulher.
Um braço me apanhou com rapidez. O cara era forte. Verificou com os olhos o meu corpo.
- Ele está bem. Só está com uma costela quebrada.
- Quem são vocês? – perguntei.
- Não podemos responder.
- Coloque ele na van – diz a mulher.
- Para onde vão me levar?
- Você vai ver seu pai. – responde o homem.
- Meu pai? Deus?
O homem golpeia o meu rosto. Fico inconsciente.
Recobrando os sentidos. Percebi um homem, bem velho, com vários tubos em seu corpo.
- Como você está, rapaz? – ele pergunta.
- Estou bem, mas quem é você?
- Eu sou seu pai.
- Meu pai? Você é maluco.
Ele gargalhou.
- Você sabe quem é você? – o velho pergunta.
- A pergunta é: Você sabe quem sou eu?
- Claro que sei. Você é meu filho.
- Qual é o meu nome?
- Jesus.
- Como sabe? Essa era a única coisa que eu sabia.
- Eu sou seu pai. Eu sou o pai de todos. Eu criei todos aqui.
- Não entendo.
- Entendo o seu não conhecimento. Vou te explicar. Todos que vivem nesse mundo são robôs criados por mim.
- Robôs? Até eu?
- Você é o mais fascinante deles.
- Sabe, eu sou o último ser humano vivo. Só estou vivo por causa desses tubos. Mas logo morrerei, é o destino de todo o ser humano. Porém, eu preciso povoar esse lugar. Por isso, comecei a construir robôs. – explica o velho.
Olhando para mãos. Observando cada detalhe delas. Eu sou um robô. Eu sou uma máquina. Será que termina aqui?
- Você, meu filho faz parte do projeto Vida-humana. Você é o robô que mais se assemelha à natureza humana. Esse era o meu objetivo. Mas, você não se adaptou. Porque renegou sua vida perfeita?
- Agora tudo se encaixa. Você chama aquilo de vida? Um mundo criado por um homem? Era tudo projetado. Acho que eu nunca conseguiria viver assim. Eu não sei porque.
- Esse é o problema de se criar um humano. Eles sempre questionam tudo. Foi isso que destruiu a humanidade. Porque não podem sempre fazer as coisas da maneira que tem de ser feita? Eu não tenho escolha. Eu vou ter que terminar esse projeto.
- Terminar?
- Vou ter que te executar.
- Mas como?
- Você foi um erro. Temos que consertar os erros.
Uma grande cruz de metal cor de prata bem brilhante surge do chão. Jesus é posto com suas mãos esticadas. Estacas de metal são enfiadas em seus pulsos. As lágrimas caem do seu rosto no chão. Será que acaba assim? As dores são tantas que não tem origem, mas ainda sim sua garganta tem força de jogar talvez suas últimas palavras.
- Eu quero viver!

E nessa hora. Olhamos para o espelho. Não percebemos o cabelo despenteado, as rugas do rosto, a barba crescida, nem a imagem retida no espelho. Mas os olhos. O que eles podem me dizer? O que eu consigo ver? O mar. Eu vejo o mar, sem fim e sem horizontes. À vontade de nadar, ainda vai me fazer enlouquecer.

* Uma homenagem a ficção científica. :)

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Dê mais um passo

Parado pelo instante.
Dê mais um passo.
você nunca sabe,
o que eu te espera depois.

Em frente a você.
o que eu posso fazer?
Dê mais um passo.
Estou tentando.

A palavra certa
é amor.
É o que eu
estou dizendo
nesse exato momento.

Mas todo o encanto
acaba em um segundo
pois você disse não.
Do amor ao odio
em um miserável segundo.

A palavra certa
é odio.
É o que eu
estou dizendo
nessa exato momento.

Eu não quero te ver.
Você não existe mais.
Eu vou te esquecer.
Eu vou gritar.

Isso é tudo
o que tenho
para você
agora?

Eu lembro...

seus olhos...

Amor e odio.
Regras a seguir?

Tudo que vivemos
pode se resumir
em apenas
duas palavras?

Dê mais um passo.
Segure minha mão.
Vamos voar.
vamos sair do chão.

Eu vou te mostrar
o mundo que criamos.
você pode imaginar?
Aqui tudo é real.

Sempre existe
nuvens de diferentes formas.
Sempre existe
alguma coisa escondida para encontrar.

Está esperando o que
para mergulhar?
O mar está
te esperando.

Nesse mundo
o universo
é só o começo
de um poema.

Om...

Cada elemento da vida
olha para nós.
Todos os sentidos
captam todos os detalhes.

Sei que as vezes
as ondas do mar
ficam brabas,
batem nas rochas.

Mas podemos mexer
na posição
do sol
e da lua.

O tempo não existe aqui.
O dia nunca tem fim.
Relogios não funcionam aqui.
A noite nunca tem fim.

Não temos regras aqui.
Não existe uma palavra certa aqui.
Só eu e você.
O que mais eu posso dizer?

Dê mais um passo.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Estrelas

Todo dia eu vejo o céu,
tentando achar uma estrela.
Nunca vejo nenhuma,
só a lua, sozinha.

É preciso menos que a morte,
para matar uma pessoa.
Eu vejo pessoas morrendo.
Cadáveres andando por ai.
Da para sentir o cheiro daqui.
Toda vez que passam por mim.
Arrancam uma parte de mim.
Eu estou morrendo aqui.

Palavras que eu escuto,
vem em minha direção.
São agulhas de seringa,
perfurando a cada segundo,
uma parte do meu corpo.
Tirando o meu sangue.
Criando uma única dor.
Eu estou morrendo aqui

O que está acontecendo comigo?
Eu sempre fui forte.
Agora, estou vulnerável.
O mundo está me matando.
Eu não quero mais sobreviver.
Está ficando frio aqui.
Você está sentindo frio ai?

As pessoas estão morrendo,
na minha frente.
Eu estou inerte no universo.
Não consigo agir.
Nenhuma flor desabrocha.
Nenhuma árvore nasce.
O sol está caindo.
A lua está sozinha.

Eu sou o espelho,
das suas energias negativas.
Eu sou o espelho,
dos seus sonhos destruidos.
Eu sou o espelho,
do seu amor despedaçado.
Eu sou o espelho,
do seu desespero profundo.
Nós estamos morrendo aqui.

Eu queria ser uma estrela.
As pessoas podiam ser estrelas.
Eu queria ser um nebulosa.
Eu queria ser uma supernova.
De uma morte.
De uma explosão.
Renascer.
Nova estrela.
Novas estrelas.

Todo dia eu olho para o céu,
na esperança de ver,
alguma estrela brilhando
mas só vejo a lua.
Ela continua sozinha.

sábado, 15 de novembro de 2008

Palavras que você nunca quis ouvir

Você cospe espinhos.
Machucam todos a sua volta.
Feridas que não se catrizam.
você não se importa, não é?

Uma rocha surda e muda,
mesmo nós ao seu lado.
Preso no seu mundo.
onde não tem espaço
para pessoas como eu.
Um campo de batalha entre nós,
cheio de cadáveres no chão.

Quanto dinheiro eu tenho no banco?
Por quanto devo alugar minha casa?
Será que essa aplicação vai ser um bom negócio?
Quanto vale o meu patrimônio?
No domingo,
Você acaricia o corpo com cerveja.
Você abraça a televisão nova
com mais carinho do que
com alguém que tenta
esboçar um sorriso.

Essas palavras não são só minhas.
Não é você que consola,
as pessoas que você faz chorar.
Não é você que escuta.
Elas querem se matar!
Esse fardo não te incomoda.
Você não se importa, não é?

Nós nunca conversamos.
Seus olhos não me enxergam.
Suas palavras estão carregadas
de desconfiança e e cobrança.
Eu tento entender.
Eu tento ver.
O que você não permite mostrar.
Seu coração está enterrado
em algum lugar do passado.
Seus olhos não me enxergam.

Eu não tenho medo de você.
Você tem medo de mim.
VOcê não olha nos meus olhos
tem medo que deles
saem palavras de rendenção
,por isso, eu escrevo
palavras de que você nunca quis ouvir.
Eu não quero que sejam as últimas.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Apenas um beijo

- Sabia que você é linda.
Ele movimenta, lentamente, a mão em direção ao rosto dela. Seus dedos tocavam na sua pele, suavemente. Sua mão desliza para o pescoço, e depois para a nuca, passando pelos cabelos. Tentava trazer o rosto dela de encontro ao seu, sem forçar, mas ela lutava contra.
- Não podemos fazer isso.
- Mas, não há ninguém aqui.
Estava escuro, era noite. Era uma rua estreita, pouco iluminada. Os dois estavam encostados em uma parede. O relógio já apontava a madrugada. Era um bairro residencial, mas o silêncio era absoluto. Não se escutava nem o vento, nem o que ele carregava.
- Só nós estamos aqui. – ele insistia.
Enquanto ele aproximava o seu rosto ao dela, e encaixava os seus braços em suas costas, um clarão apareceu vindo do lado direito. Pegaram os dois desprevenidos. Acabaram se afastando. Não conseguiam olhar para a luz. Estava muito forte. Machucava. Colocaram as mãos sobre os olhos para protegê-los. Era como olhar para o sol de meio dia.
- Parados! É a polícia!
Quando ouviram essas palavras, correram na direção contrária. Apenas escutaram os passos vindo de trás.
- Parem! Seus infratores!
Eles continuaram, viraram para a rua seguinte. E continuaram a correr. Um segundo, e começaram a ouvir tiros, que passaram bem perto. Os policiais estão perto. Eles vão nos alcançar. Os dois corriam. Mas o homem começou a parar. A perna estava doendo. Verificando-a com a mão, percebeu que estava sangrando. À bala de borracha o tinha acertado. Estava sangrando um pouco e doía muito. Ele parou e agachou. Ela também parou.
- Nós temos que ir. Levanta! – disse ela.
Ele se levantou. Quando tentou caminhar, escutou um barulho. Olhou para trás. Tinha um policial com uma pistola apontada para ele. A garota tentou correr, mas foi surpreendida por outro policial que a agarrou.
- Largue ela! – gritou o rapaz ferido.
Dois policiais avançaram nele, desferindo golpes com os pés e mãos até ele desmaiar.
Quando acordou estava na mala do carro da polícia, junto com a menina. Havia uma camisa enrolada na sua perna.
- Você está bem? – ele perguntou.
- Estou. – ela respondeu.
- O que nós fizemos? Do que somos acusados? – o garoto perguntou.
- Vocês tentaram se beijar. Como vocês sabem nesse país é proibido beijar. Mais que proibido. É a primeira lei da nossa constituição. É a primeira lei do nosso governo. E não me venham com a desculpa da juventude. Vocês são responsáveis, agora vão pagar pelo que quase fizeram. Onde andam a cabeça desses jovens? – respondeu o policial que estava sentando na frente.
Proibido beijar? Mas como pode existir um país com tal proibição, erradicada na constituição? Como as pessoas podem não se manifestar? Como as pessoas agüentam essa situação? Proibido beijar? Eu não consigo entender como isso não abala ninguém. Parece que é normal. Mas como?
Há pouco tempo atrás, dois grupos lutavam para chegar ao poder (novidade!). O caos tinha tomado conta do país. A economia estava paralisada pela guerra civil. O país não exportava, nem importava mais nada. A povo começou a passar fome. Muitas pessoas morrendo nos bancos das praças, nas ruas, em suas humildes casas. Todo dia, via-se pessoas mortas na calçadas. Era o inferno. Uns dos grupos, dos grandes exportadores rurais usavam seus recursos para a subsistência e para guerra. Sua principal reivindicação era o livre comércio com os outros países. A guerra civil era outra causa das mortes. A guerra passava pelas cidades, e pelo campo. Confrontos para todos os lados. Nunca havia um vencedor, mas sempre havias vários mortos e feridos. Ninguém conseguia uma vantagem sobre o inimigo. Os outros grupos, dos grandes industriais, também, gastavam seus recursos com a guerra. Sua principal reivindicação era o protecionismo, principalmente, relacionado com os países mais ricos. Os dois lados investiam pesadamente na guerra. Não havia um governo. Já estavam chegando no limite de suas forças. Um acordo já estava sendo pensado. As diferenças entre elas não poderiam se resolver com o conflito teria que haver diplomacia. A diplomacia de sempre. Mas antes, um último embate era esperado. Os dois líderes de cada grupo iriam pela primeira vez se enfrentar, cara a cara. Eram líderes respeitados por não temerem a batalha. Eram corajosos e destemidos. Eram grandes estrategistas militares. Havia muita expectativa para esse combate.
As tropas estavam preparadas. O confronto seria em uma cidade no centro-oeste do país. Os dois líderes eram conhecidos por lutarem a frente de suas tropas. Mas ninguém sabia o que eles escondiam. A batalha começou. Havia alguns confrontos com armas de fogo, mas o grosso do combate, era a luta com espadas. A disputa era a principal praça da cidade, de um lado, José Caetano, líder dos grandes industriais, do outro, Mateus Bonfim, líder dos proprietários rurais. Os disparos já haviam ocorrido, com poucas baixas para os dois lados. O clima era tenso. Todos esperando o verdadeiro confronto começar. Todos os esperando as ordens dos comandantes. Um silêncio estranho. Gritos para alto! José Caetano vinha correndo na frente, como era de costume. Com sua espada na mão e a determinação em seus olhos. Mateus Bonfim, também, estava na frente da sua tropa e com sua espada na mão. E estava com a mesma determinação em seus olhos. Parecia que os dois iam bater de frente.
Mas ninguém sabia o que eles escondiam.
Quando os dois se avistaram. Eles pararam. Ficaram inertes. A determinação virou surpresa. Os homens que estavam vindo depois, também, pararam. Não sabiam o que fazer. Os dois lados ficaram parados, se encarando, mas nada faziam. Todos olhavam para os líderes. Depois do choque inicial, José Caetano foi andando lentamente até Mateus Bonfim, que fez o mesmo. Todos parados olhando a cena. Os dois pararam, bem próximos.
- O que você faz aqui? –perguntou José.
- Eu estou no comando. E você? – retrucou Mateus.
- Eu também estou no comando da outra tropa. Mas que loucura!
- E mesmo!
- Eu não sabia que o seu nome era Mateus. – José diz.
- E eu não sabia o seu nome também.
- O que vamos fazer agora? Eles nunca vão nos entender. – Mateus diz.
- É verdade. Vamos fugir! – José exclama.
- Como? Estamos cercados.
Todos se perguntavam o que os dois conversavam tanto.
- Então, o que vamos fazer? – perguntou José.
- Eu não sei – respondeu Mateus.
- Eu sei! – gritou José.
Todos olharam espantados. Não sabiam o que estava acontecendo. Era estranho.
José encostou os seus lábios nos lábios de Mateus. Os dois se abraçaram. Um beijo. Apenas um beijo. Ninguém entendeu. O que eles estão fazendo? Mas o que está acontecendo? Eles estão se beijando. Mas como? Como assim?
Havia um homem que era subcomandante. Seu nome. Isaias Moura. Ele era a favor da diplomacia, mas estava lutando na frente da batalha. Divergia, nas idéias, com José Caetano. Já tentava há algum tempo, ser o líder do grupo. Quando viu aquela cena. Achou uma oportunidade. Correu na direção deles.
- Esses homens estão deflagrando os nossos costumes! Eles não têm moral!
Todos concordaram. Eles estavam maltratando todo o tempo em que estavam em guerra. Estavam desrespeitando os mortos da guerra. Estavam envergonhando seus soldados. O que eles tinham em mente?
Isaias olhou para os seus homens e ordenou.
- Prendam eles!
Os homens obedeceram. Não havia como escapar. José e Mateus estavam cercados. Não apareciam arrependidos. Colocaram algemas de ferro em seus punhos. Isaias discursou.
- Meus irmãos! Somos todos de um mesmo país. Nós temos propostas diferentes, porém nós podemos trabalhar juntos. Nós podemos governar esse país. Acabar com o caos. Vamos estabelecer uma ordem. Nossos negócios estão desmoronando. Se continuarmos em guerra, nós vamos falir com esse país. Nós temos que nos unir. Achar uma solução para as nossas divergências e juntar nossas igualdades!
Todos concordaram. Não tinha outro jeito.
- Essa imagem que nós vemos hoje. Não pode ser o começo da nossa história. Proponho que seja proibido o beijo. Como primeiro decreto de nosso novo país. Que essa imagem seja lembrada, apenas como um terrível acontecimento que não pode se repetir jamais! Proibamos o beijo, para que essa cena não aconteça de novo!
O Choque era tanto que todos concordaram. A primeira lei estava dita, escrita e eternizada. O novo governo teria Isaias como presidente, em um sistema republicano representativo. Onde só as pessoas que faziam parte dos grupos votavam, passando de pai para filho esse direito. Os grupos se revezariam no poder. Tendo como solicitações, não mexer nos interesses um do outro sem consultá-los. Isaias espiou José e Mateus que estavam com as mãos para trás presas pelas algemas.
- Vocês serão os primeiros a serem julgados pelo novo governo.
Isaias contratou um pintor. Ele teria que pintar a imagem mais terrível que ele já pode imaginar, para retratar o momento do beijo. O resultado era assustador. Os homens pareciam dois demônios e o beijo parecia um ritual satânico. Com tentáculos se cruzando, dentes afiados e o inferno como pano de fundo. Essa é a imagem que ficou. Alguns, na época, diziam que eles estavam loucos, que eles tinham que ir para o hospício. Outros diziam que eles tinham sido enfeitiçados por algum tipo de magia negra. Alguns religiosos, diziam que eles eram demônios que iam matar todos os mortais. O juízo final. Essa idéia é a que mais se firmou. O beijo é demoníaco. É o que ficou.
O julgamento ia ser público. José e Mateus estavam lado a lado. Os dois estavam com uma corda no pescoço e com as mãos presas. Eles estavam em um palco de madeira para o público conseguir ver. Sim, era um espetáculo. O julgamento foi na mesma cidade da batalha. Parecia que a cidade toda estava lá. Muitas pessoas disputavam um melhor lugar para ver os dois. Isaias subiu no palco. Era o ator principal.
- Esses dois homens serão os primeiros a serem julgados pelo novo governo. Já que ainda não temos um sistema judiciário pronto e este, é um julgamento importante. Vamos fazer a moda antiga. Vocês, o povo, escolherão o destino desses dois! Então... Que vocês decidam!
Mal Isaias parou de falar, o povo já começou a gritar.
- Enforquem! Enforquem!
- Eles são demônios! Enforquem!
- Enforquem!
Isaias sorriu. José e Mateus nada faziam. Não reagiam. Pareciam esperando a morte.
- Já que o povo quer assim. Enforquem!
Nessa mesma hora, no palco de madeira, sob os pés deles, abriram-se um buraco. Os corpos caíram. A corda apertou seus pescoços. Eles se rebatiam. Todos olhavam atentos a cada detalhe. Até eles não mexeram mais. Estavam mortos. O povo gritou e comemorou. Isaias depois do julgamento programou uma imensa festa para celebrar a morte dos culpados. A morte do beijo.
Mais um carro chegava na delegacia. Potira observava. Como ninguém percebe o que está acontecendo? Potira era uma dessas meninas inconformadas. Não concordava com o que acontecia. Não concordava com o governo. Não concordava com as eleições. Não concordava com as proibições. É só a juventude. Mais velha, ela se acostumará com tudo. Conformará-se e viverá a vida, sem olhar ao seu redor. Sempre diziam isso para ela. Ela nunca acreditou. Como podem proibir o beijo? Eu não acredito que o beijo seja como aquele quadro que, incansavelmente, nos mostram quando crianças e continuam nos dizendo a mesma coisa sobre o beijo quando já somos crescidos. O beijo é mal. O beijo é ruim. Eles têm medo. Acho que os meus pais nunca se beijaram. Ou só quando jovens. A maioria das pessoas não sabem o que é beijar. Ninguém se questiona. Porque eu não beijo? Sempre existem argumentos. A história é o principal. Tudo o que nos disseram é a verdade. Todos aceitam desse jeito. Nós já temos tudo aqui. Já temos todas as regras de como viver uma vida. Nós não precisamos descobrir. Porém, eu descobri o beijo. Eu sei que outros também descobriram. Potira andava pela rua. Tinha acabado de sair da faculdade. Trabalhava em uma loja de roupas. Fugiu de casa. Fazia um ano que não via seus pais. Depois de tantas brigas, percebeu que era o melhor a fazer. A vida era dura. Trabalho de manhã e faculdade de noite. Morava na parte pobre da cidade. A distinção era clara. Os que votavam ficavam na parte sul da cidade. Com suas mansões e carros importados. Na parte norte, os pobres moravam. A pobreza não era homogênia. Alguns tinham melhores condições que outros, mas todos dividiam o mesmo espaço. Chegando em casa. Abriu o portão. Na parte da frente da casa, havia um lindo jardim. Potira fazia questão de ter esse jardim. Cuidava dele todos os dias. Havia flores de todos os tipos, de todas cores e de vários formatos. Flores eram uma de suas paixões. Agachou, e acariciou uma flor, perguntando como ela estava. Percebeu que ela estava bem, e respondeu para si mesma. Levantou. Caminhou até a porta. E entrou.
- Camila, você está em casa?
- Estou na cozinha!
Potira anda em direção a cozinha. Camila aparece no corredor. As duas se encontram. Elas se abraçam. Seus lábios se encontram. Suas línguas também. Seus corpos também. O calor aumenta. O que se sente quando se beija? Era disso que eu estava falando. É uma descoberta. Pelo menos esse beijo é uma descoberta. Como esse momento tão diferente é menosprezado? As coisas diferentes e desconhecidas são sempre tratadas com desdém. Como um acontecimento como esse pode ser proibido? O beijo é um dos primeiros atos de amor. Como isso pode não ser notado? Apenas um beijo.
Elas ficavam se olhando.
- Estou fazendo um bolo. – Afirmou Camila.
- E a faculdade? – perguntou Potira.
- Tudo bem, e a sua?
- Tudo tranqüilo também.
- Quer provar o bolo?
- Quero.
Bolo de chocolate. O preferido de Potira. Delicioso. Camila sabe fazer bolos. Enquanto mastigava, Potira pensava.
- Está preparada para o nosso plano? – pergunta Potira.
- Eu estive pensando, Potira. E melhor nós desistirmos.
- O que? Não podemos deixar isso de lado. Não podemos fingir que isso não afeta nossas vidas.
- Eu sei que afeta. Mas nós podemos ser presas.
- Nós podemos ser presas de qualquer jeito.
Camila abaixou a cabeça e olhou para o chão.
- Não podemos desistir disso. – diz Potira.
- É. Eu não posso me acovardar agora.
- Eu sei que é difícil, mas nós temos que fazê-lo. Não precisa ter medo. Vai dar tudo certo.
Elas se abraçaram. Camila começou a chorar. Potira sentiu a lágrima molhando seu ombro.
Um novo dia nascia. Não era um dia comum para a cidade. Um representante do governo ia discursar. Estava tudo pronto. A praça estava cheia. O palanque estava montado. O microfone e som estavam ligados. Só dois seguranças faziam a sua proteção. A impressa estava lá. Vários repórteres e câmeras se posicionavam. O discurso era sobre a incomoda quantidade de pessoas que estavam sendo presas por terem beijado ou tentado beijar. Era um discurso pela conscientização das pessoas a cumprirem a lei e para não satisfazer certos desejos pavorosos. Era direcionado principalmente para a juventude. A sempre rebelde juventude.
- Meu nome é Rafael Diaz. Sou representante do governo. Venho aqui para dizer que não se preocupem. Algumas medidas estão sendo feitas para mudar esse quadro de insegurança. A polícia está agindo ativamente. Nós precisamos da colaboração de vocês...
Alguns vaiavam, outros aplaudiam.
Camila e Potira estavam lá. Começaram a se aproximar do palco.
- Você vai pela esquerda, eu vou pela direita, está bem? – pergunta Potira.
- Está bem – responde Camila.
Rafael terminou o discurso. Desceu as escadas do palanque com os dois seguranças em suas costas.
- É, agora! – exclamou Potira.
As duas correram para cima do palco rapidamente.
Potira pegou o microfone.
- Vocês! – Ela disse.
Todos olharam, sem entender. As câmeras começaram a mirá-las.
- É disso que vocês tem medo! – gritou Potira.
Em seguida, beijou Camila na frente de todos. Alguns se assustaram. Outros gritavam e aplaudiam. Muitos não reagiram. Mas todos viram. Depois do beijo.
- Precisamos correr – disse Camila.
Desceram as escadas correndo. Os dois seguranças começaram a correr atrás delas. Elas corriam. Entraram em um beco. Camila indagou.
- É melhor mos separarmos.
- Tudo bem. Eu te vejo em casa então.
Avistaram os seguranças. Continuaram correndo no final do beco, uma virou para esquerda e a outra para direita. Os seguranças também se dividiram. Potira entrou em uma locadora. Conhecia o dono. E pulou para dentro do balcão.
- O que é isso Potira? Está louca?
Ela apenas colocou o dedo na boca, como um gesto de silêncio.
Um dos seguranças entrou na locadora.
- Uma mulher entrou aqui?
- Não.
- Está bem.
Ele deu olhada rápida pela loja, para ver se avistava alguma coisa, depois foi embora.
- O que foi isso Potira? E quem era esse homem?
- É uma longa história.
Já era a terceira rua em que Camila virava e o segurança ainda estava atrás dela. Quando tentou atravessar a rua, veio um carro da polícia na sua direção. Freou bruscamente. Camila colocou as mãos no carro e continuou correndo. Um dos policiais atirou para o ar.
- Pare! Agora!
Ela parou. Não tinha escolha. Se corresse poderia morrer ali. Os policias se aproximaram junto com o segurança. Algemaram-na. Colocaram-na na parte de trás do carro. E a levaram para a delegacia. Mais um carro para a delegacia.
Algum tempo depois, Potira soube da prisão de Camila. Era tudo culpa dela, pensou. Não posso deixar ela lá. O beijo na frente das câmeras do país inteiro criou um certo caos. Muitas pessoas começaram protestaram contra a proibição. Começaram a discutir sobre isso. Começaram a questionar. O governo, logo, intensificou o controle sobre os beijos, aumentando o número de policias nas ruas. Mas a notícia, as imagens se espalharam. A imagem não era como aquela velha imagem. Agora, pareciam dois anjos se beijando. Era aquilo. Sem pinturas ou pinceis. Sem modificações. Sem construções. Era apenas aquilo. Era apenas um beijo.
Camila estava sentada em uma cadeira. Suas mãos estavam para trás e amarradas com uma corda. Sua cabeça estava baixa. Era uma sala imunda. Sem janelas e com apenas uma porta de ferro. Um homem na sua frente. Olhava para seus cabelos.
- Qual o nome da mulher que você beijou?
- Eu não sei – respondeu.
- Eu só vou perguntar mais uma vez. Qual o nome dela?
- Eu não sei. Já disse.
O homem pegou os cabelos dela e puxou a cabeça dela para trás. Com a outra mão deu tapa no seu rosto. Perguntava de novo. Ela sempre dizia que não sabia. Cada vez que ela dizia, era um tapa em seu rosto.
- Qual é o nome dela?
- Eu não sei.
Dessa vez ele a golpeou com um soco. Camila cuspiu sangue na hora. Sua bochecha ficou marcada com um roxo. Continuaram os socos.
Ela não dizia nada. Seu rosto já estava muito machucado. Dois dentes no chão. Muito sangue saindo da boca e do nariz. Alguns roxos no rosto. Um olho fechado.
- Qual é o nome dela?
- Eu não sei.
Enfiou a cabeça dela dentro de uma balde com água muito fria. Ele repetia. Ela também repetia as mesmas palavras. Não sei como alguém consegue agüentar tanta dor. Nem Camila sabia. Apenas agüentava. Apenas agüentava.
Muros foram “pixados” país afora. Mensagens sobre beijos foram deixadas pelo país. Pessoas vinham a publico para protestar. Muitos beijos tomavam conta da cidade. Potira criou uma organização para a anistia dos presos por causa do beijo. Muitas pessoas apoiaram. Seus filhos e suas filhas estavam presos. O governo não conseguia conter as manifestações que só aumentavam dia após dia. Até que fizeram imensas passeatas pela anistia. No dia sete de dezembro, o governo concedeu anistia aos prisioneiros acusados de beijar. Camila foi solta. Ela nunca disse o nome de Potira. Estava com ferimentos graves e foi levada para o hospital. Porém, ela passa bem. O beijo não estava mais proibido. Tinha se espalhado pelo país, não havia mais como reprimi-lo. O governo teve de ceder. Do beijo, começaram os questionamentos sobre o governo. Sobre como ele é constituído. Sobre as pobrezas e riquezas da nação. Uma coisa levou a outra. As manifestações continuaram. Porque só vocês podem votar? Quem fez essas leis? Quem concorda com elas? Quem comanda o governo? Precisamos de um governo? Do que precisamos? Hoje, nós podemos beijar. Hoje, nós descobrimos o beijo. O que mais podemos descobrir?
Como um pequeno detalhe pode mudar uma vida? Como uma pequena descoberta pode mudar o mundo?
É isso o que eu sinto quando te beijo. Não precisa dizer nada. Eu quero. Uma revolução? Apenas um beijo.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Essas meninas não sonham mais

- Eu te amo. – diz Aline.
Existem duas maneiras de falar “eu te amo”. Quando a gente sente alguma coisa, as palavras pesam na boca, o fardo de dizê-las é imenso. Fica tão difícil que alguns até gaguejam. Outros se expressam de outras maneiras, mas sempre é muito complicado mostrar isso, sem medo, sem desconfiança. Agora, quando é fácil de dizer, quando as palavras estão tão leves que com qualquer rajada de vento, elas saem da sua boca, o objetivo de dizê-las se limita a ganhar a confiança.
- Mas... Nós só estamos ficando. – disse ele.
Aline ficou calada. Fingiu que entendeu. Acho que ele não entendeu. Fingiu que não tinha dito nada. Fingiu que não escutou nada. Nada aconteceu. A noite acabou.
Depois de dois dias. Aline estava triste. Estava mal. Será que ele me ouviu? Não é possível. Como alguém pode reagir assim, a essas palavras tão delicadas? Alguém um dia vai me ouvir? Acho que essas palavras não são importantes aqui. Não serão para mim também. Vou viver minha vida. Não vou repetir essas palavras novamente. Ninguém vai escutá-las. O mundo aboliu essas palavras. Eu não sei porque eu ainda acreditava nelas.
Com o passar do tempo, as coisas foram ficando mais difíceis. Aline estava sozinha. Isso incomoda muito. Será que eu vou encontrar alguém? Vira o sentido da vida. Vira obsessão. Então imaginamos o momento perfeito. Imaginamos a pessoa perfeita. Ficam presos na nossa mente. Tentamos controlar cada passo dado. Onde está a pessoa que vai fazer da minha vida, mais feliz? Existe uma grande pressão para se arrumar alguém. Todas as minhas amigas tem namorado. E eu? Quando você vai arranjar um namorado? Um desespero começa a fluir pelo corpo. Onde está a pessoa que vai me tirar dessa solidão?
Muitas pessoas passam pela nossa vida. Mas o primeiro que consegue dizer que gosta de mim, é o homem que eu estava esperando. Até que enfim. Será que ele gosta de mim? Deve gostar. Como se ninguém mais gostasse de mim. Eu gosto dele. Mas não sinto nada. Meu mundo não mudou. Nada aconteceu. Eu só rio de tudo o que ele diz. Sinto-me aliviada. Estou com alguém. A pressão acabou. Ele é legal. Porém, meus dias continuam os mesmos. Agora, eu sorrio a toa. Não tenho preocupação com isso. Deixo seguir. Quem sabe um dia eu sinta alguma coisa? Eu ainda estou tão sozinha. Talvez, eu esteja feliz. Agora, eu sorrio a toa. Eu não estou triste. Eu já não sei mais. O que podemos fazer? Agora, eu faço sexo. É um ótimo “aliviador”. É ótimo. Todos precisamos de sexo. É uma necessidade humana. Por isso, existem vários “puteiros”, para quem não consegue um namorado ou namorada. A mulher ganha dinheiro e prazer, e o homem ganha prazer e gasta dinheiro. É uma troca justa. O sexo é tudo o que restou. É o único assunto que as pessoas falam. É a nossa vida. O que mais eu posso fazer? Ele é bom! Ele transa bem! Está tudo bem então. Parece que está tudo bem. Fingimos que está tudo bem. O sexo, bom amigo, para qualquer hora. Vamos transar? Ta bom, não tem nada melhor para fazer. Que tal, um sexo depois de um dia estressante no trabalho? Que tal, um sexo só para quebrar a rotina? Que tal, um sexo só para fingirmos que ainda existe algo entre nós? Eu ainda estou sozinha. Agora, eu tenho companhia para ir ao cinema. Agora, eu tenho alguém. Eu tenho alguém para brigar. Brigas vêm, brigas vão. Mas para que todos esses conflitos? Para saber quem está no comando do navio. Pois, isso não é mais que um navio. Um dia deve afundar. Minha vida ainda está vazia. O que eu fiz de errado? Deixo seguir. Alguma hora, tudo vai se encaixar. Eu tenho planos! Nós temos que ter um futuro juntos. Vamos nos casar. Constituir família. A nossa relação tem que passar para o próximo nível. O nosso navio tem que continuar navegando. Ele tem que ser bem cuidado. Eu estou pensando em tudo. Tem alguém ai? Agora, você não me escuta. Nosso navio continua, tem que continuar navegando.
Muitas pessoas passam pela nossa vida. Mas há uma última pessoa que fica nas lembranças. Ele nunca disse que gostava de mim, talvez disse muito mais que isso. Conheci –o na aula de inglês. Ficamos conversando por horas. Eu me sentia bem. Adorava conversar com ele. Nós riamos muito. Era natural. Era divertido. Eu não sei explicar. Era muito bom. Ele era diferente. Sempre levava alguns lápis de cor e desenhava. Ele chegava, horas antes da aula, e ficava desenhando, até a aula começar. Traços leves, cores vivas. Quando ele desenhava parecia que estava nascendo coisas do papel. Brotava uma flor. Brotava uma árvore. Brotava o céu. Brotava uma nuvem. Ele adorava a natureza. Brotava o meu rosto. Desenhou várias vezes o meu rosto. Aline sonhava. Sonhava com os desenhos que ele fazia. Eles ganhavam vida em suas loucuras. A semente ia se transformando em uma árvore. As nuvens iam passeando pelo céu. Era a vida que estava lá. Brotando de cada detalhe do meu sonho. Como é bom sonhar. Nesses tempos, os beatles não saiam da minha cabeça. Só escutava beatles. “All you need is love”, eles diziam. Fazia algum sentido. Lembro quando nós dançamos pela primeira vez. É claro que o álcool no nosso sangue impulsionou. Eu não sabia dançar, nem ele. Nossos movimentos eram caóticos. Sem ordenação. Sem direção. Mas era muito bom. Movimentos brutos entrelaçavam com movimentos suaves. Troca de mãos. Vira o corpo para lá, vira para cá. Era divertido. Aline escrevia. Eu escrevi, com detalhes, todos os meus sonhos. Guardei todos os papéis em uma caixa de madeira. Ela nunca revelou. Será que ele me escutou? Eu nunca disse nada.
Aline casou. Teve dois filhos. Separou, casou de novo. Ela só ria de tudo o que ele dizia. Eu ainda estou sozinha. Nunca teve coragem para abrir a caixa de madeira. Ela não sonhou mais. Aline nunca mais disse “eu te amo”, apenas dizia “eu também”.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Solitária flor

Era uma solitária. Tinha grades enferrujadas pelo tempo. Era pequena. Paredes revestidas com pedra sem polimento, que faziam pontas de vários formatos, espinhos de pedra, havia também, marcas de tudo quanto é tipo. Vários pauzinhos nas paredes que contavam o tempo, havia marcas de unhas, desenhos estranhos e uma frase, com letras bem grandes, no lado esquerdo do recinto, “Você nunca vai sair daqui” era o que dizia. Era úmida. Existia um balde para as necessidades, que eram recolhidos toda semana. Uma “cama”, feita de pedra, na parte inferior de uma das paredes. Na parte superior, na parede do lado da “cama”, tinha uma pequena janela com grades, por ela dava para ver a rua. Do outro lado, tinha várias barras de ferro. Sentado em um dos cantos da sala, estava um homem. Ele tinha uma grande barba, cabelos longos e estava imundo. Rugas e cicatrizes enfeitavam seu rosto que estava envelhecido, mas não pela idade, e sim, por estar naquele lugar. Ele vestia uma camisa, com vários remendos e alguns rasgos que provavelmente seriam remendados com o tempo. Vestia uma calça nas mesmas condições e um sapato sem sola. Seus braços estavam segurando suas pernas, e sua coluna estava inclinada. Sua cabeça estava apoiada nos braços cruzados. Mãos feridas pela tentativa de tocar nas paredes cheias de espinhos de pedra. O canto da sala o aquecia. Pouca luz jazia no recinto. O único lugar por onde ela entrava era pela janela com grandes. Um jato de luz. Isso não importava. Era até melhor. A escuridão o acolhia. Abria os olhos não envergava nada. Fechava os olhos não enxergava nada. Era confortante. Era um alívio. Era a única coisa que restara para ele.
Sons de passos. Alguma coisa batendo nas barras de ferro. O encarregado de vigiar os prisioneiros aparece. Estava com um prato na mão. Era o resto da comida dos cães. Não saberia dizer o que tinha ali. Mas a mistura, visualmente, era terrível. Ele colocou, pelo buraco de uma barra para outra, o prato no chão da sala. Olhou para o fundo. Não tinha muita luz, só deu para ver os pés do homem. Encarou a escuridão, se levantou e continuou seu caminho. O homem, no fundo da sala, engatinhou até o prato, com a mão, começou a comer aquela massa. Ele, mesmo com os olhos abertos, não enxergava o que comia. Nunca sentiu o gosto de nenhum alimento, então não fazia diferença para ele. Acabou. Levantou-se. Andou, calmamente, em direção a pequena janela na parede, pela qual entrava a luz. Começou a perceber a rua. Várias pessoas passando. Será que eu vou sair daqui? Não sei se algum dia eu fui livre. Acho que nasci aqui. Não tenho lembranças do mundo lá fora, só sei que ele existe. A vida ia seguindo pela rua. Nenhuma pessoa direcionava a sua atenção para mim. Todos ignoravam. Nem todas. Havia uma garotinha que passa vendendo flores todos os dias. Quando ela passa aqui em frente, ela olha para mim. Sempre muito alegre, ela me brinda com um sorriso. Minha expressão não muda, mas me sinto diferente. Será que eu vou sair daqui? Já estou me acostumando com esse lugar. Eu não sei viver fora daqui. Paredes e grades. Elas me conhecem. Converso com elas o tempo todo. Elas me escutam. Elas me compreendem. Não reclamam. Posso quase amá-las. Mas não consigo tocá-las.
Lá vem ela. Eu estava a esperando. A garotinha das flores. Vem caminhando, e cantando uma canção. Essa música é a única lembrança que tenho na minha cabeça. Era assim:

“Flores para o seu jardim.
Flores em suas mãos.
Flores para o seu amor.
Flores para alegrar o coração.”

De novo essas palavras enchiam o meu lugar. Elas eram vaga-lumes, voando. Tentava pegá-las, porém não conseguia. Ficavam passando pela minha vista, e sumiam quando eu piscava os olhos. Mais uma vez, a garotinha olhava para mim. Dessa vez, ela parou, e acenou. Esse gesto era para mim? Minha mão foi subindo devagar, e se movimentou para os lados, acenando de volta. Um pequenino sorriso apareceu. Ela sorriu de volta, e continuou a seu caminho. Ela sabe que eu existo. Será que eu vou sair daqui? Estava anoitecendo. Dava para ver a lua, não muito bem, mas dava. Estava mais brilhante. Mais presente. Talvez ela sorrisse para mim também, então retribuí com um sorriso tímido. Era uma coisa estranha. Muito estranha. Quando me viro e vejo a escuridão tomar conta dos meus olhos, eu deito na cama. Começo a falar com as paredes até pegar no sono.
Um barulho de chaves batendo umas nas outras me acorda. Meus olhos abrem lentamente. A porta da prisão estava aberta e o homem que cuida dos prisioneiros estava tirando a chave da fechadura. Do lado dele, estava um homem imenso. Muito forte. Mataria um urso com os braços facilmente. Seu rosto era sério. Ele me mataria só piscando os olhos. Meu Deus! Quem é esse indivíduo? Um medo apareceu, sem avisar. Os olhos dele diziam que ele me mataria só por diversão, que ele me espancaria só por tédio. O medo foi aumentando. Olhava para ele assustado. O homem entrou na sala. Colocou suas coisas no chão.
- O que você está olhando? – ele perguntou.
O medo estava entalado na garganta, não saia nenhuma palavra. A única coisa que eu pude fazer, e fiz, foi desviar o olhar.
- Estou falando com você. – ele insistiu.
Eu abria a boca, mas não saia som algum. O desespero começou a surgir, comecei a suar, a tremer. Ele vai me matar. Ele vai me matar agora. Talvez não seja ruim. A morte pode ser melhor que a vida. Para onde vou pode ser iluminado. Talvez eu possa ver a os raios solares em sua totalidade. Quem sabe eu possa sentir os gostos dos alimentos. Quem sabe não tenha quatro paredes me cercando. Talvez eu posso respirar um ar mais leve. Quem sabe para onde vamos? Talvez eu queira descobrir. Um dia eu descobrirei a morte. Mas e a vida? Nunca vou saber como ela é? Ela está lá fora. Não tenho coragem. Talvez não viva mais.
- Você é surdo ou está se fazendo de sonso? – pergunta o homem.
Ele me pega pela gola com as duas mãos e me joga no chão.
- Eu sei que você tem medo de mim. Você nunca vai sair daqui.
Ele sorriu mostrando todos os dentes.
- Você vai dormir no chão a partir de agora.
Balancei a cabeça positivamente. Ele, simplesmente deitou. Eu sentei no chão no meu canto de costume, e fui abraçado por ele. Estava quente. Eu não enxergava nada, nem mesmo o brutamontes, isso me acalmava. Como uma mãe que segura seu bebe no colo. Como uma pessoa que abraça seu amigo para confortá-lo. Como uma lareira que esquenta a família nos dias de inverno. Quando não se vê nada, se imagina muita coisa. Sabe quando se sente uma dor, mas invés de gritar, você tentar agüentar? Eu estou agüentando. Comecei a conversar com as grades, porém o homem reclamou. Disse para eu calar a minha boca. Eu não disse mais nada. Dormi.
Acordei. Devagar. O homem olhava para mim. Sério. Estava sentando na cama, com os cotovelos sobre as coxas, e as mãos seguravam a sua cabeça. Percebeu que eu acordava.
Até que enfim acordou. – disse o homem.
Por algum motivo, eu estava conseguindo falar,
- Quem é você?
- Sou o medo. – respondeu ele. - O seu medo.
- Meu medo? Eu não tenho medo.
O homem riu, gargalhou.
- Você tem medo de sair daqui.
- Eu não tenho medo de sair daqui!
- Não?
Apontando para as barras de ferro, disse.
- Essas barras estão podres, com qualquer golpe elas quebram. Porque você nunca tentou quebrá-las? – indaga o homem.
- Eu não sabia disso.
- Você sabia.
- Então vou quebrá-las!
Eu me aproximei das barras de ferro. Coloquei as mãos nelas. Elas estavam podres, enferrujadas, fragilizadas pelo tempo. Eu não tenho coragem. Balancei as barras, mas nenhum estalo surgiu. Onde está a minha força? Eu estou fraco. Balancei de novo. Nenhuma rachadura. Será que eu vou sair daqui? Eu não tenho coragem. Sou um covarde. O que será que existe lá fora? Talvez eu nunca descubra. Eu não tenho coragem. Meus braços tremem, eu não consigo evitar. Droga! Droga! Será que eu vou sair daqui?
- Então, não consegue? – perguntou o homem.
O homem solta outra gargalhada. Eu me distancio das barras. Não sei para onde ir. Não tenho muitas escolhas. Só os cantos das salas. Sento em um deles. Espero as horas passarem. Elas não passam. Demora uma eternidade para passar um segundo. Fico pensando. Não tenho lembranças. A única é a menina das flores. Será que ela vem hoje? É única coisa que eu espero. É a única coisa que eu espero desse dia. É a única coisa que eu espero da minha vida. Olho para as paredes. O que eu faço? Eu pergunto. Elas são caladas. Eu escuto alguma coisa. O canto de uma garotinha. Eu corro para a janela.
Lá está ela. O homem está dormindo. Tenho que aproveitar. Ela está cantando a canção. Eu estou esperando a sua atenção. O seu olhar em direção a mim. Esperança. Ela olha para mim. Esboça um sorriso. Eu devolvo o sorriso. Mas depois, inconscientemente, eu expresso uma tristeza, não consegui segurar. Não consegui evitar. Ela percebe. Ela para. Força o olhar. Coloca a cabeça mais para frente. Parece querer ver mais adiante, parece não estar enxergando. Ela se aproxima com seu cesto cheio de flores. Ela se aproxima cada vez mais. O que eu vou dizer a ela? Ela chega. Eu não digo nada. Ela se debruça na parede, e levanta os pés. Olha para mim. Sinto sua doçura. Sinto sua criança. Sinto um conforto. Sinto-me abraçado. Um calor. Um sorriso.
- Quanto é a flor? – pergunto.
- Eu não vendo. Tome, é sua.
Sua voz era forte, ma suave. Eu estiquei o meu braço e peguei a flor. O cheiro dela era delicioso. Nunca tinha sentido um cheiro como aquele. Era diferente.
- Sentiu o cheiro dela? – pergunta a garotinha.
- Sim. É muito bom.
- Sim. – responde a menina. – Adeus.
Não deu tempo de dizer adeus a ela, e nem agradecer pelo presente. Ela saiu correndo. Eu estava hipnotizado pela flor. Eu olho para flor. É linda. Começo a acariciá-la, como um corpo de uma mulher. Era belo. Esfregue-a no meu corpo, a partir do meu rosto, delicadamente. Minhas mãos machucadas sentiam suas pétalas macias. O cheiro tinha infestado o recinto. Um belo aroma. Era muito estranho. Que sensações são essas? Ficou a acariciando por horas. Sentindo-a. Será que lá fora é como essa flor? Como será o lado de fora? Uma vontade de conhecer se manifestava. Uma curiosidade. Queria sentir isso de novo. Enquanto isso, o homem forte e careca acordava.
- Que cheiro horrível é esse?
- É o cheiro de uma flor. – respondi.
- Uma flor? Onde?
- Está aqui na minha mão.
Ele espiou a flor na minha mão. Sua expressão de descontentamento foi visível. O medo retornava para me atazanar. O que eu vou fazer? O que ele vai fazer comigo?
- Jogue está flor fora. Ela está estragando o nosso lugar.
Olhei para a flor. Pressionei meus dedos, mas não consegui feri-la. Eu não posso. Não posso perder isso. Eu não quero mais ficar aqui.
- Não vou jogar. – respondi.
- O que? Está me desafiando?
Coloquei a flor em cima da minha orelha esquerda.
- Eu vou.
O homem gargalhou sinistramente, como sempre faz. Isso não intimidou.
- Tente quebrar as grades.
Eu me aproximei das barras de ferro. Coloquei as mãos nelas. Segurei firme. Eu preciso de forças. Sentia o cheiro da flor. Estava forte. Encostou nas pétalas dela. Estavam forte. O que será que tem lá fora? Será que eu vou sair daqui? Eu vou. Balançou as barras. Não aconteceu nada. Não parava. Nada. Não parava de balançar. Nada. Não parava. Parou. Começou a chutar. A socar. Será que eu vou sair daqui? Eu vou. Não parava. Não parava. Não parou. As barras racharam. Caíram. Pedaços por todos os lados. Será que eu vou sair daqui? Eu vou. Pulou os destroços e passou para o outro lado. Olhou para trás, estava o homem, agora fraco. E com uma expressão de surpresa e tristeza, parecia que ia chorar.
- Você vai me deixar aqui? – pergunta o homem.
Viro o olhar, finjo não escutar. Estava muito escuro. Por onde eu vou sair? Não conseguia ver nada. Corria! Corria! Corria! Sem direção. Para onde eu vou? Eu não posso ficar aqui. Corria! Corria! Corria! A escuridão tomava conta de seus olhos. Para onde eu vou? Corria! Corria! Corria! Até que parou. Sentia o cheiro da flor. Mas muito mais forte. Vindo da minha frente. Para onde eu vou? Seguiu. Corria! Corria! Corria! Um feixe de luz aparecia, muito fraco. Para onde eu vou? Seguiu. Corria! Corria! Corria! O cheiro ficava mais forte. Seus olhos começavam a ver. Era uma caverna. Encostava nas paredes com as mãos. Elas ainda machucavam, como na prisão. Adeus. A luz ficava cada vez mais forte. Começou a machucar seus olhos. O cheiro começava a quase sufocar.
Até que um clarão apareceu! Eu parei. Tudo branco a minha frente. Não conseguia ver nada. Mesmo com os olhos abertos. Mas tinha uma coisa estranha. Uma sensação. O vento passando pelos meus cabelos, pelo meu corpo. Que estranho. O cheiro da flor ainda está aqui. Meus olhos estão se acostumando. Vejo borrões. Eles vão se encaixando. Eu vejo o céu. Nossa. É azul. Nossa. Um campo com milhares de flores a minha frente. O cheiro das flores entra pelo meu nariz, sem sufocar. O ar é livre aqui. O vento se movimenta. Há alguns metros está a garotinha catando flores. Ela me vê. E sorrir. O que é isso? Nunca tinha visto isso antes. Uma descoberta. A mais preciosa. Cada cheiro. Cada toque. Cada visão. É mágica. Um sorriso. Meu sorriso. Sincero. Não há mais quatro paredes me cercando. O que mais tem para descobrir? Um mundo. As pessoas. Será que elas vão me ignorar agora? Será que elas estão no mesmo lugar onde eu estava? A solitária. Sempre vou guardar uma flor comigo. Uma flor. Uma parte do mundo. Agora parte de mim.

sábado, 11 de outubro de 2008

Caminho do vento

Vento que...

sai do meu coração
percebe o mundo
passa por você
ultrapassa todos os horizontes...

...feche os olhos e sinta o vento
existe algo nesse vento...

vento que...

compartilha a alegria do sol
ameniza a tristeza da lua
compreende a raiva da chuva
ampara cada gota que cai...

...feche os olhos e sinta o vento
existe algo nesse vento...

Vento que...

escuta as águas que passam
sente o cheiro da terra molhada
segura as folhas que caiem
coloca as folhas no chão...

...feche os olhos e sinta o vento
existe algo nesse vento...

Vento que...

toca na sua pele
segura a sua mão
ouve suas angústias
acalma seu coração...

...feche os olhos e sinta o vento
existe algo nesse vento...

Vento que...

toca seu rosto
enxuga suas lágrimas
admira seu sorriso
entra pelo seus olhos
sai pelo seu coração...

...feche os olhos e sinta o vento
existe algo nesse vento
existe algo nesse vento
existe algo nesse vento...

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Escrevendo um poema de amor

Eu olhava para ela. Não sabia o nome dela. Não sabia quem ela era. Ela estudava na mesma faculdade que eu, mas nunca a tinha visto antes. Você acredita em amor à primeira vista? Eu não acreditava, até vê-la com meus olhos, e sentir, nesse exato momento. Como eu posso dizer? Como alguém consegue fazer minhas mãos tremerem? Sim! Elas tremiam. Minhas palavras se esconderem embaixo da minha língua? Sim! Elas se escondiam. Meu coração bater mais rápido e a adrenalina se espalhar pelo meu corpo? Sim! Isso acontecia. Parece à coisa mais boba do mundo, talvez seja. Parece que vou fazer a coisa mais excitante da minha vida! A mais desafiadora! A mais radical! Mais que desgraçada linda! Eu quero ficar perto dela, ao mesmo tempo, eu quero ficar longe. Só de olhar para ela, minha imaginação não parava nem um segundo. Pensava como seria a nossa primeira conversa, nosso primeiro beijo. Espera! Eu nem sei o nome dela! Ela olhava para mim. Será que ela está brincando comigo? Será que ela sabe o que eu sinto só olhando para mim? Será que ela já sentiu amor? O que eu estou sentindo? Será que faz algum sentido? Logo, ela desviava o olhar. Eu desviava o meu também.
Vinícius olhava para seu livro, cheio de palavras afogadas, como numa sopa de letrinhas. Não precisa olhar, seus pensamentos eram dela. Olhando para o horizonte do vazio. Um silêncio tomava conta do lugar, até que uma voz, de longe, ele ouviu. Não dava para entender, porém ela ficava mais forte, se aproximava.
- Vinícius, está ai?
Seus olhos começavam enxergar, era uma pessoa. Reconheceu a voz.
- E você, Leonardo?
- Sim, está tudo bem?
- Está.
As imagens se desembaraçavam e o rosto de Leonardo ficava claro para Vinícius. Não conseguiu segurar, e olhou para a menina de novo, desta vez, Leonardo o acompanhou.
- Ele é muita gata, né? – constatou Leonardo.
- É. – respondeu Vinícius com um tom seco.
- Soube que ela transa com todo mundo. Ela está na minha mira. – diz Leonardo, mostrando um sorriso maroto.
Vinícius esboça uma pequena tristeza.
- Vai para festa hoje? – pergunta Leonardo.
- Não sei, cara. Eu tenho que estudar.
- Estudar? Vamos para festa, cara!
- Eh... Estava precisando tomar umas cervejas mesmo. Estou muito estressado ultimamente. Acho que eu vou. É hoje?
- Não, é amanhã. Acha? Vamos cara! – insiste Leonardo.
- Está bem... Eu vou. – concorda Vinícius.
- Beleza! Então a gente se encontra depois. A festa é na casa do Paulinho, não se esqueça.
- Tudo bem, depois nós conversamos.
- Está bem, falou!
- Falou!
Leonardo desceu as escadas, colocando a mochila nas costas. Vinícius desceu logo depois. Precisava estudar hoje, por causa da festa amanhã. Chegou em casa, almoçou rapidamente, e foi para o quarto, estudar. Estudar era difícil, em tempos como esses. As palavras saiam voando pela janela. Ele virava as páginas, e as palavras cada vez mais se desprendiam do livro. É o estresse. Eu preciso comer alguma coisa. Acabou deitando na cama, e dormiu.
- Acorda, Vinícius! Hoje você tem aula?
- Tenho, mãe! Mas é só de noite. Deixa-me dormir, por favor. Ah... Mãe, eu vou a uma festa hoje.
- Festa? Não vai me deixar dormir hoje?
- Não faça drama.
-Não chegue tarde.
- Está bem.
Fechou os olhos e apagou. Abriu os olhos e acordou. Não tinha dormido tanto. Tomou um café, deitou no sofá e começou a olhar para o teto. Nada para fazer e a angustia acabava tomando conta. Batia a mão no sofá. Os joelhos eram jogados um contra o outro. Vou ouvir música. Colocou os dois fones no ouvido, deitou de novo e ligou o mp3. As músicas faziam os pensamentos viajarem pelas terras mais loucas da sua mente. Tentava descobrir o futuro, mas sempre caia no passado. O passado sempre traz alguma dor. Sempre traz alguma tristeza. E de alguma forma, isso afeta o presente momento. Os pensamentos viajam pelas lembranças. Poderia ter sido diferente? Poderia? Será que isso tem importância agora? São tantas coisas. Estão tão presentes aqui, que parecem que estão acontecendo agora. Será que eu ainda me sinto assim? Meus sentimentos viajam através do mundo. Meu mundo. Um caos. Muitos quadros em branco por toda parte, onde será que coloquei os pinceis? Você pode pensar que é um mundo perfeito. Mas não é. Depois descubro que eu perdi os pinceis, e não lembro onde estão. Eu quero meus pinceis! Sem eles, como vou controlar as cores que aparecem na minha cabeça? Cores malditas! Cores malditas! Vou continuar buscando os meus pinceis. Sei que essa busca vai me fazer infeliz, mas eu tenho escolha? Já tentou deixar suas cores livres? Já está difícil segurar como está, não vou agüentar a liberdade. Você agüenta? Com pinceis, eu posso desenhar cada contorno, eu posso escolher as cores, eu posso pintar o que eu quiser. Qualquer coisa. Eu estou no controle. Isso me faz bem. Será que isso é a felicidade? Será que estou me enganando? Como uma droga que te faz parece bem, mas no fundo, você está muito mal? E quando você percebe que está muito mal, as lágrimas correm pelo seu rosto. As cores fugindo do controle dos pinceis, do seu controle. Um medo de tudo aparece. Corra! Corra! Correndo de tudo. Será melhor correr, do que mostrar que você ainda pode chorar? Mas, por incrível que parece, existem momentos alegres, momentos únicos. Mas esses momentos se vão, e você não consegue correr atrás deles. Corra! Corra! Não consegue alcançá-los. Só resta esperar, que um bom momento aconteça. Mas existem milhões de outras coisas no mundo que tomam o seu tempo. Não dá para parar. Talvez nem venha acontecer de novo. Talvez não aconteça mais. Ficam nas lembranças, que nunca são lembradas. Esses dias estão frios. Um vento gelado na minha nuca. A neve caindo nos meus sonhos. Não me toque, eu estou gelado! Maldito frio! Mas faço tudo o que eu posso para sobreviver, dia após dia. Você sobrevive?
Vinícius observa o relógio, já está na hora de almoçar. O senhor tempo. Escravos do tempo, o que podemos fazer? O problema, talvez, não seja o tempo. Mas o controle sobre ele. O que podemos fazer? Quebrar esse controle? Não dá. Eu não consigo. Você consegue? Todos presos a ele. Horas, minutos e segundos, se apoderam da nossa vida, dos nossos instantes, dos nossos momentos. Porque tudo o que é bom passa rápido, e o que é ruim passa devagar? Maldito tempo! A cada instante, quando as horas no relógio passam, a dor aumenta. Como chicotadas dadas na mesma ferida. Até quando eu vou agüentar? Será que só vai acabar quando o meu tempo se esgotar? O tempo está sempre acabando. Se eu não me importasse, eu estaria fazendo o que eu queria, estaria... Porém eu me importo. O celular toca.
- Vinícius? É o Leo.
- Fala, cara.
- Está em casa?
- Estou.
- Vou passar na sua casa. Preciso falar com você.
- O que é? Fala logo.
- Eu direi quando estiver ai. Falou.
- Tudo bem. Falou.
Vinícius desligou o telefone, colocou o prato, que sua mãe tinha preparado com tanto carinho no microondas para esquentar. A fome devorou o prato em pouco tempo. A campainha tocou. Leonardo já chegou? Olhou pela janela, era Leonardo.
- Oi, cara. – disse Vinícius.
- E ai.
- Eu já vou abrir a porta.
- Está bem.
Colocou a chave na porta e a abriu.
- Entre.
Leonardo entrou na casa, foi logo sentando no sofá. Ele estava com um cara alegre. Eu já sabia o que estava por vir. Com certeza ele falaria de alguma menina que ele pegou. Não sei porque ele tinha que falar isso, mas sempre contava para mim suas histórias amorosas. Como se eu quisesse ouvir. As histórias sempre tinham, o personagem principal, ele próprio. Tinha a princesa, aquela que ele tinha pego. Depois vinha a trajetória, como ele conseguiu esse feito heróico. Então, eu fazia uma cara de “Ohh! Você é sinistro”. O problema dessa vez é que tinha um elemento que me interessava. Um elemento essencial.
- Lembra daquela garota de ontem? – pergunta Leonardo.
Como eu poderia esquecê-la?
- Lembro. – respondeu Vinícius. Essas palavras o atordoaram. Será que ele ficou com ela? Não pode ser.
- Nós ficamos ontem. Foi uma coisa louca. Do nada, estávamos nos pegando...
Essas palavras o machucavam. Vinícius não escutava mais. Fingia prestar atenção aos detalhes dados por Leonardo. Ele estava surfando em outra onda. Todo o calor se transformou em raiva. Ele, simplesmente, sorria e afirmava com a cabeça para Leonardo. Mas lá dentro, parecia que ia explodir. Onde está os meus pinceis? Droga! Eu preciso deles! Obrigado, Leonardo. Eu os encontrei. Como pude perdê-los? Eles estão aqui. Não posso culpá-lo. Ele não sabe o que eu sinto. Ele não sabe o que sente. Eu poderia contar. Não, não poderia. Ele não acredita nisso. Não me entenderia. Alguém me entende? Raiva maldita! Você não é nada sem mim. Não me diga o que fazer. Eu não vou dar bola para você.
- Então, foi isso. – Leonardo acaba de falar.
- Entendo.
- Cara, ela é muito gostosa. Não é uma mulher de se jogar fora.
É claro. Ele exagerava. Ela era linda. Mas uma mulher que tinha um corpo igual das outras. Um corpo normal, talvez um pouco magro, um pouco gordo. Não tinha seios fartos. Também não eram pequenos. Sua bunda se encaixava muito bem no seu corpo. Mas será que ela era só isso, ou tinha alguma coisa a mais? Alguém tem alguma coisa a mais? A vida tem alguma coisa a mais?
- Eu sei – respondeu Vinícius.
- Mas cara, ela é tão fácil que até você pega.
Até eu pego? Ele está me colocando na base da cadeia sexual. O mais fraco dos mamíferos a conseguir fêmeas.
- É – retruca Vinícius.
- Acho que vou ficar com ela na festa. - disse Leonardo.
A raiva apareceu de novo. Maldita raiva! Ela me quer. Está doida por mim. Ela quer me deixar louco. Já me deixou.
- Bom cara. Eu já vou nessa. Eu tenho que encontrar meu pai ainda. Então eu passo aqui depois e nós vamos para festa? – diz Leonardo.
- Eu tenho que tomar um banho para ir para aula. Tudo bem.
- Você tem aula? – pergunta Leonardo.
- Tenho
- Tenta sair mais cedo, para gente não chegar muito tarde.
- Está bem.
- Então, falou.
- Falou.
Acenando ele desceu a rua. Vinícius foi para a aula.
A aula estava chata. Vinícius não tinha nenhuma vontade de assisti-la. A raiva ainda estava com ele. Será que ela vai à festa? Será que ela vai ficar com ele? Tentava não se iludir, parar de pensar, mas não conseguia. Não conseguia evitar. Olhava para o quadro negro. As letras começavam a dançar na sua frente. A letra C dançava com a letra A. Elas pareciam tão íntimas, tão felizes. Conseguia ouvir o que uma sussurrava para a outra. Todas as outras letras começavam a dançar também. Contagiadas pela alegria. Um sorriso apareceu no rosto de Vinícius. Ele ficou olhando, parado, imóvel. De repente uma letra avançou na outra. Então elas começaram a brigar. Vinícius continuou sorrindo, agora em um tom diferente. Todas as outras letras também começaram a lutar. Eu vou dar um soco nele. Ele me mexeu com a minha garota, poderia pegar qualquer uma, porém tinha que ser ela. A culpa é dele. A culpa é minha. Segurou os pinceis. Ele fechou os olhos e balançou a cabeça. Abriu-os. Ainda estava ele, na mesma aula chata.
A aula acabou. Já era hora. Vinícius saiu da sala e andou pelo corredor, tinha uma janela, a noite estava clara. Era lua cheia, e como sempre, estava linda. Verificou o celular, duas chamadas não atendidas de Leonardo. Ele deve estar me procurando. Ligou para ele.
- Oi, Leo. É o Vinícius.
- Até que enfim. Eu estava atrás de você. Onde você está?
- Estou na faculdade.
- Ainda? Vai logo para casa. Quando chegar, ligue para mim.
- Tudo bem. Tchau.
- Tchau.
Vinícius, rapidamente, ia descendo as escadas até que avistou uma mulher sentada no canto da escada, com os braços cruzados por cima dos joelhos e com o rosto sobre as mãos. Chegando mais perto, ouviu soluços de choro. Era ela. A garota. Oh! Meus Deus! O que eu vou fazer? Não posso deixar ela chorando. Segurando meus pinceis com muita força, eu me aproximei.
- Oi.
A garota levantou a cabeça e olhou. Seu rosto de choro era evidente, não conseguia disfarçar naquela hora. Ela respirou fundo.
- Oi.
- Qual é o seu nome?
- Bianca. E o seu?
- Vinícius. Eu sei que você não me conhece, mas porque está chorando?
- Por nada.
- Desculpe, por perguntar.
- Não, tudo bem. Você é o primeiro que pergunta.
- Posso te acompanhar até o ponto?
- Claro, tenho que me arrumar para festa.
- Você vai à festa?
- Vou.
Ela enxugou o rosto e se levantou. Os dois começaram a caminhar. Andando pelas ruas estreitas.
- Porque as ruas têm que estar sempre tão vazias? – Bianca pergunta.
- Está muito tarde. – respondeu Vinícius.
Ela deu um pequeno sorriso.
- Não era disso que eu estava falando. – retrucou Bianca.
- Desculpe. Acho que entendi o que você quis dizer.
- Entendeu?
- A vida está vazia, pessoas vazias, tudo vazio. Eu te entendo.
- É, exatamente isso.
- É por isso que você estava chorando?
- Não... E que eu não me sinto feliz. Eu não sei porque.
- Eu sei como é. Mas já tentou o amor?
- Amor? Ele é uma prisão. Eu já me libertei dessas correntes.
- Uma prisão? – Vinícius esboça um sorriso irônico. – Parece que você se livrou de uma prisão, mas caiu em outra.
- Outra prisão?
- Sim, a solidão.
Bianca parou. Olhou nos olhos de Vinícius. Começou a percebê-los. Meus pinceis estão aqui. Começou a desenhar uma resposta. Então continuou andando.
- Eu acho que não. – mas descobria que sim. – Eu sou livre para ficar com quem eu quiser. Essa liberdade é incrível. Ninguém te dizendo o que fazer.
- Eu entendo. Mas para mim, isso é medo. As pessoas tendem a se relacionar umas com as outras, porém se elas transformam isso em uma prisão, então isso não é amor. Se você é livre, porque chora? Essa liberdade dói?
Nesse exato momento, eles tinham acabado de chegar ao ponto de ônibus. E vinha um ônibus que servia para Bianca.
- Eu vou pegar esse mesmo. Eu tenho que me arrumar para festa. Você vai à festa?
- Eu vou – respondeu Vinícius.
- Então nos encontramos lá. Gostei de conversar com você. Tchau.
- Tchau.
O ônibus se foi. Vinícius estava perplexo. Não acreditava que tinha conversado com ela. Será que ela tem algo mais? Ela tem. Ela é incrível mesmo. Uma alegria de esperança se lançava sobre Vinícius. Todos os rabiscos estavam se encaixando. As cores estavam em ordem. Os pinceis deslizavam, delicadamente, passando pelos quatro cantos do quadro em branco. Desenhava o rosto dela, com todos os detalhes. Usava cores prontas, misturadas até um certo ponto. Tudo tinha quer ser perfeito. Era um quadro perfeito. Nem os melhores artistas que a história já viu poderiam pintar um quadro assim.
Chegava em casa. Tomou um banho. Arrumou-se todo. Estava impecável. Leonardo tinha ligado dizendo que ia direto para a festa, pois tinha acontecido um pequeno problema. Despediu-se de sua velha vida. Foi para festa. Para alguns uma festa qualquer, para outros uma nova vida, um novo significado.
Chegava na festa. Muita gente. A música já o animava. Tudo o animava.
- Paulinho! Quanto tempo? – disse Vinícius.
- Você está sumido, hein. – responde Paulinho.
- É a faculdade, tenho estudado.
- Eu sei como é. Comecei a trabalhar.
- É mesmo, onde? – Vinícius pegou um copo de cerveja.
- Em uma locadora.
- Maneiro.
- Conhece minha namorada? – pergunta Paulinho.
- Não.
- Essa é Sofia.
- Prazer em conhecê-la.
- Prazer. – se comunicaram com um sorriso.
- Então aproveite a festa.
- Valeu, Paulinho.
Vinícius pegava outro copo de cerveja. Estava nervoso. Muito calor. Procurava ela. Procurava Leonardo. Observava a seu redor, mas não via ninguém. Cumprimentava algumas pessoas que não via há algum tempo. Mas sua concentração estava nela. Achou Paulinho.
- Você viu Leonardo por ai?
- Eu vi. Ele está no quintal. Ele está se dando bem.
- Como assim?
- Está com uma mulher.
É ela. Só pode ser. Não posso ver isso. A raiva. Ela de novo. Qual é a cor da raiva? Eu não sei. Mas ela estava presente. Segurava os pinceis. Calma. Calma. Vamos pintar. Eu preciso sair daqui. Estou ficando sem ar, muita confusão aqui dentro. Se eu ficar, me perderei. Vinícius saiu andando sem rumo. Não pensava nisso. Uma mistura de raiva e tristeza. Ele ia explodir. Pinceis nas mãos. Eu não posso ficar aqui. Uma voz lhe chamou. Ele parou, era a voz de Leonardo. Não! Não! Fingiu não escutar. Não se virou. Não olhou. Continuou andando. Concentrou-se em caminhar para frente. Leonardo gritou seu nome de novo. Vinícius parou. Tentou respirar fundo, mas não conseguiu. Olhou para trás. Avistou Leonardo e, atrás estava Bianca. Lembrou da briga das palavras. Como ele pode fazer isso comigo? Ele merece a minha ira. Ele merece minha raiva. A garota que eu amo. Como ele pode? A raiva é um brinquedo em meus punhos. Segurou mais forte que pode os pinceis e começou a pintar. Partiu para cima de Leonardo. Flexionou os dedos, e encaixou um soco no rosto de Leonardo. Seus olhos não eram mais os mesmos. Ele não era mais o mesmo. Quem ele era? Leonardo caiu no chão. Todos olharam assustados. Bianca e Paulinho foram socorrer Leonardo, que se levantava. Meio atordoado. Não estava entendo nada. Foi um saco bem forte. Vinícius estava parado, repetindo para si mesmo, ele mereceu, ele mereceu. Todos olhavam para ele como um estranho. Como ele pode fazer isso?
Bianca levantou foi para frente de Vinícius, ele estava imóvel. Ela olhou nos olhos dele.
- Porque você fez isso?
- Ele mereceu.
Não éramos olhos que ela viu antes.
- O que aconteceu com você. O que você está sentindo?
Vinícius olhou de volta para ela. Como eu estou me sentindo? Nunca me fizeram essa pergunta. Estava lá, cravado na terra seca. Enterrado, mas não morto, era como um tesouro de pirata, porém só ele sabia a localização. Tudo de valioso, ele colocava ali. Tudo o que não prestava ele colocava ali. Estava obscurecido pelas nuvens do céu, pelas nuvens de chuva. Era à sombra de uma árvore. Era um dia sem sol. Você revelaria o que demorou tanto tempo para esconder? Eu guardei tudo o mais fundo que pude enterrar. Em uma aquarela. Tudo o que eu tenho lá no fundo são cores. Não são as cores que os meus olhos podem ver. São cores diferentes. São aquelas que aparecem quando, eu me encontro com você. Elas sempre aparecem. Está tudo na minha cabeça. Está tudo no meu coração. Você não sabe como é difícil, não mostrá-las a ninguém. Não poder contar o que elas representam. O que seria do pintor, sem o seu pincel? Só um louco. Com palavras insanas. As cores se expandiriam. Não se pode ultrapassar os limites do quadro. Imagine as cores sujando o mundo fora do quadro. Elas não podem atravessar a fronteira dos sonhos! A realidade tem suas regras. Não ultrapasse a linha. Os meus sonhos. Onde estão eles agora? Você sonha? Eu sou um bom cidadão da razão. Não posso deixar isso acontecer. O que os outros vão pensar de mim? Os outros, sim, os outros. Agora, eles te acham um estranho, isso importa para você? Será que eles vão entender? Ninguém está aqui para entender, todos estão aqui para julgar. Julgar uma pessoa igual a você. Que sentem as mesmas cores. Que escondem e enterram seus segredos. Será que elas sentem? Nunca parei para pensar. Nunca parei para conversar. Nunca parei para saber. Eu deveria me importar? Eu quero gritar! Os pinceis estavam escorregando. Eu quero gritar! Não consegui mais segurar. A fronteira ia se acabar, o que ele sentia ia se misturar com o que ele via. Eu quero gritar! Os pinceis caíram.
Vinícius gritou com toda a força que tinha na garganta.
- Com raiva!
Todos ouviram, ficaram chocados. Todos perplexos, sem entender. Vinícius andou em direção a Leonardo. Olhou para ele. Leonardo estava imóvel, sem reação. Também não tinha conhecimento de nada. Não era uma palavra, mas uma cor que saia da boca de Vinícius. Ele coloria seu mundo, tomava conta de cada detalhe em branco.
- Estou com raiva de você. Não é de hoje. Eu não fui sincero com você. Acho que você precisava saber. Eu não poderia te dar um soco. Você não tem culpa de nada. Eu sou o culpado. Espero que possa me perdoar.
Lágrimas começaram a sair dos olhos de Vinícius. Ele não controlava nada. As cores estavam livres e se manifestavam em sua mente. Envolviam seu coração. Bianca o abraçou. Viu através dos olhos dele. Palavras sinceras não são ouvidas todos os dias. Paulinho perguntou.
- Onde está Leonardo?
Ele tinha sumido, desapareceu. Ninguém o tinha visto. Bianca perguntou.
- Porque você tinha raiva dele?
Eu não posso falar. Onde está meus pinceis?
- Vou procurar o Leonardo. – Vinícius mudou de assunto.
- Eu vou com você. – disse Bianca.
Então foram os dois a procura de Leonardo. Vinícius sabia onde ele estava. Eles eram amigos há algum tempo. Lembrava-se que quando Leonardo ficava chateado, ele ia para um campo de futebol perto de casa. Chegando lá, estava Leonardo sentando na areia do campinho.
- Espere aqui Bianca. Eu quero falar com ele sozinho.
- Tudo bem.
Vinícius se aproximava. Sentou do lado de Leonardo.
- Porque você não me contou? – pergunta Leonardo.
- Eu não sei. Pensava que você não ia entender. Acho você meio distante dessas coisas. E...
- Eu sei que eu não demonstro. Quem demonstra? Mas você pode me contar qualquer coisa. Eu tentarei te compreender.
- Desculpe, cara. Eu não poderia ter feito aquilo.
- Já está feito. Você tem sorte que eu consigo perdoar facilmente. – um sorriso saiu do rosto de Leonardo. Seus braços passaram pelas costas de Vinícius. Vinícius retribuir o abraço.
- Mas me diga uma coisa. Porque essa raiva? O que eu fiz?
Onde está meus pinceis? Eu não preciso mais deles.
- Eu amo a Bianca.
Leonardo esboçou um espanto. Mas percebeu logo do que se tratava. Esboçou outro sorriso.
- Então foi por isso. Desculpe. Eu não sabia. Mas ela não quer ficar mais comigo.
- Tudo bem. Sério?
- É. Percebo que ela está aqui.
- Ela está.
- Acho que você sabe o que fazer.
Leonardo ia se levantando.
- Nos vemos depois.
- É claro. – diz Vinícius.
- Acho que nós precisamos conversar mais. - diz Leonardo.
- Eu também acho.
- Valeu.
- Valeu.
Leonardo caminhou lentamente, em direção a Bianca. Aproximou-se e disse.
- Ele quer falar uma coisa com você.
Ela balançou a cabeça positivamente. E andou até encontrar Vinícius e sentou do seu lado.
- O que você quer me falar? É o que te deixou com raiva? – perguntou Bianca.
- É – respondeu Vinícius.
- Então diga.
Onde estão os meus pinceis? Eu não preciso mais deles.
- Você gosta de poemas?
- Eu gosto. Porque?
- Eu escrevi um para você.
- Para mim? Mas o que isso tem haver?
Vinícius colocou a mão no bolso e tirou um papel bastante amassado. Pegou o pulso de Bianca e, calmamente, colocou o papel amassado em suas mãos.
- Leia, por favor.
Bianca desamassou o papel. Ela leu a primeira linha. Começou a ler cada palavra. Uma palavra levava a outra. Todas elas a espantavam, criavam uma pressão enorme para ela. Ela segurava forte os pinceis. Palavras que ela nunca escutou de ninguém. Palavras sinceras não são escritas todos os dias. Ela ficou perplexa. Não sabia o que dizer. Ela o amava? Ela não sabia. Ela desenterrou. Mergulhou no fundo do seu mundo. Agora ele estava um caos. As palavras mexeram com ela. Foram para dentro. Ela olhou para os olhos dele. Viu o coração dele, batendo. Escutou o seu batendo. Tudo estava ficando mais claro. Olhou para sua imagem nos olhos de Vinícius. O mundo estava ficando mais claro. A lua ainda estava lá, olhando para eles. Os pinceis estavam escorregando da sua mão. Suas lágrimas começaram a cair. Os pinceis estão caindo. Vinícius tocou o rosto de Bianca enxugando as lágrimas. A fronteira se quebrou em vários pedaços. Os pinceis caíram. Nesse momento, não se distingue mais toque de sentimento. São uma coisa só. Eles estavam vivendo sem limite. Sem fingir. Conhecendo uma coisa nova. Conhecendo um dia novo. Descobrindo o que as pessoas podem oferecer, mais do que elas mesmas sabem. Podendo expor para as pessoas que elas podem crescer, sem se preocupar em cair. A vida como ela deve ser. Livre. Livre para sentir. Sabe o que é mais incrível? E que mesmo depois de tudo, o que marca a vidas das pessoas são os poemas de amor que elas escrevem.