quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Quem sou eu? *

O mar. Eu vejo o mar, sem fim e sem horizontes. As águas do mar molham, delicadamente, meus pés descalços. Elas me convidam para me juntar a elas. A areia. Caindo das minhas mãos lentamente, fria, em uma tarde fresca da primavera. Uma imensa floresta. Atrás de mim. Várias árvores juntas, em harmonia, quase me abraçando. O sol. Está bem fraco hoje, seus raios solares não machucam minha pele, nem a minha cabeça. Na verdade, eles me tocam suavemente. Como dois amantes, segundos antes, de se beijarem. O vento. Conduz o equilíbrio dos elementos nesse dia como qualquer outro. Eu vejo o mar. À vontade de nadar, ainda vai me fazer enlouquecer. Não importa, estou a poucos metros de mergulhar. O dia. Esses dias com o céu azul, não faz a gente lembrar, não faz a gente esquecer, nós só estamos ali. Nós ainda estamos ali. Respirando aquele dia. Dia que tomam conta de todos os nossos pensamentos. Mas nem todos os dias são assim. O tempo. Todos tentam prevê-lo, mas está sempre mudando. As águas do mar. Não estão mais calmas. Porque batem tão furiosamente nas rochas? Já não me aproximo mais. Já não nado mais hoje. A chuva. Os pingos molham meu rosto, passando por cada imperfeição. Em todo rosto, a expressão muda, uma tristeza vinda dos céus cai de repente em nós. Um furacão. Derruba todas as árvores atrás de mim. Quem vai me abraçar agora? Continua quebrando tudo, até garrafas de cerveja e lixeiras no meio da rua. Nessa hora, não dá para parar. Nada o faz parar. A areia. Minha mão não consegue tocá-la, quente, em um deserto ao sol do meio dia. O sol. Corri para a sombra, minha cabeça não vai agüentar esses fortes raios solares. Não quero que os meus sonhos derretam. E depois sejam levados pelo furacão que passa agora. Para onde será que eles irão? As sombras. Até que elas proporcionam um conforto momentâneo. O que seriam de mim sem elas agora? Não sei quando vou sair daqui. O dia. Porque nossos dias mudam tanto? A praia. Você vai correr para longe da praia. Mas à vontade de nadar nunca vai te abandonar. Quem sou eu? Sabe, nós não somos tão diferentes assim.

Debaixo dos lençóis, o relógio já marcava das seis da manha. Mais um dia de trabalho. Levantou. Antes de ir para o chuveiro, olho pelo espelho. Cabelo despenteado. Barba crescendo. Esfrego os olhos e passo uma água no rosto. O tempo está passando. Eu não sei porque, mas fico pronto rapidamente. Desço correndo. Minha mulher e meu filho estão me esperando. Os dois sorriem para mim.
- O que você vai querer de café da manhã? – ela pergunta.
- Um café com leite, por favor. – respondo.
- Claro!
- Filho, como vai a escola?
- Muito bem, sou o primeiro da classe.
- Menino inteligente. Esse é meu garoto! Depois da aula você vai poder brincar.
- Eu não quero. – responde o garoto.
- Não quer?
- Não.
Sem entender, pego o meu copo de café com leite. Corto o pão levemente e passo manteiga. Fico olhando os dois. Parecem bem. Parecem felizes.
- Quando voltar sua janta estará pronta, querido.
- Está bem – responde meio tonto.
Tinha terminado o café da manhã, e como sempre estava atrasado.
- Não esqueça da mala, querido!
- Obrigado.
Ela sempre lembra. Eu sempre esqueço. Saio de casa. Meu carro me espera. Olho para os lados. Os vizinhos sorriem e acenam. Parece a que estava tudo concordado entre eles..
- Bom dia, vizinho! – todos dizem.
- Bom dia a todos!
Eu entro no carro. Acho que vou pegar um engarrafamento. Não tenho escolha, apenas dirijo o carro. Como eu previa. Um congestionamento imenso. Porém, enquanto eu passava, todos me davam bom dia, e sorriam. Que coisa estranha. Parece uma encenação. Consigo chegar no trabalho. Eu não sei o que eu faço, mas devo descobrir. Cheguei atrasado. É um prédio enorme no centro da cidade. Subo alguns andares de elevador. Chego a uma sala imensa com várias pessoas trabalhando. O tempo para. Em câmera lenta vem chegando alguém. Um homem de terno. Ele deve ser meu chefe. O tempo acelera.
- Você chego atrasado mais uma vez.
- Desculpe...
- Tudo bem, não tem importância – responde com um sorriso no rosto.
Não é possível. Ele disse que está tudo bem. Era para eu ser demitido. Eu não entendo.
- Pode ir para seu escritório.
- Você pode me mostrar o caminho?
- O que deu em você? Não lembra? Eu vou te levar até lá.
- Eu não sei. Obrigado.
A minha sala é grande, cadeira confortável, mesa de uma madeira selecionada e computador parecendo bem potente. Mas, por alguma razão, eu não agüentava ficar ali. Não conseguia olhar mais para aquele computador, nem mais um segundo. Aquela sala estava me sufocando. Não fico mais aqui. É tudo muito estranho. Parece que não disseram como me comportar aqui. Eu vou embora. Saiu do prédio, sem falar com ninguém. Todos olham para mim. Será que eu fiquei louco? Não lembro o que vim fazer aqui. Não sei porque estou aqui. As pessoas só sorriem e acenam. Alguém passa na minha frente.
- Você está com fome, amigo? – alguém pergunta.
- Não. Obrigado.
Outro passa sorrindo.
- Está com frio? Precisa de um agasalho?
- Não. Mas obrigado.
Eles não me conhecem. Ninguém conhece ninguém, mas eles se tratam como se conhecessem. Todos muito atenciosos. Vou para casa. Pego o carro e acelero.
Abrindo a porta, coloco o primeiro pé em casa.
- Já chegou? Ainda não aprontei o seu jantar. Mas espere um pouco que ele vai estar pronto. – diz minha esposa.
- Mas está muito cedo.
- Ele logo estará pronto!
Parece que ela não escuta.
- Onde está o garoto?
- Está na escola, querido.
Eu não lembro o nome dele. Mas eu não sou o pai dele? O que está acontecendo? Também não sei o nome da minha esposa.
- Querida. Qual é o meu nome?
- Não posso responder essa pergunta, querido.
Ela não sabe?
- Qual é o nome do nosso filho?
- Junior.
O que está acontecendo? Eu não sei quem são essas pessoas. E parece que elas não sabem quem eu sou. Será que eu sei quem eu sou. Eu só sei meu nome. O mundo está girando muito rápido. Náuseas, tontura, e vomito. Droga!
Ela está olhando para mim e sorrindo. Será que ela não percebe o que está acontecendo aqui?
- Quando foi à primeira vez que nos beijamos?
- Não posso responder essa pergunta.
- Porque não?
- Não posso responder essa pergunta.
- Para de repetir isso! - Desculpe, não é você. Sou eu. – reflito.
Tem algo errado aqui. Não parece real. Não pode ser uma imitação da vida. Será que existe alguma coisa real aqui? Eu não agüento mais ficar aqui. Essas paredes estão me sufocando.
- O jantar está pronto.
- Eu não quero jantar. Você não faz outra coisa?
- Faço. Lavo, passo e arrumo a casa. Não sou a esposa que você sempre quis?
A expressão do meu rosto, não conseguirei descrever. Parece uma propaganda da tv, tentando vender o produto, falando suas supostas qualidades. Eu não consigo dizer nada. Eu saio de casa.
Quando olho para rua, vejo o meu filho vindo da escola. Meu filho. Por um minuto a minha cabeça esfria.
- Como foi na escola hoje?
- Foi divertido pai!
Vejo a inocência em suas palavras. Sinto-me bem, mas não posso deixar de perguntar.
- Qual é o meu nome?
- Não posso responder essa pergunta.
- Mas como? Como não sabe?
- Não posso responder essa pergunta.
Uma força chega até mim. Eu começo a correr.
- Pai! Para onde vai?
Eu paro.
- Meu lugar não é aqui. Antes me dê um abraço.
- Eu não sei fazer isso.
De novo, não consigo descrever a minha expressão. Mas as chaves do carro estão em minhas mãos. Ligo o carro. Olho pelo vidro. Minha esposa apareceu. Os dois estavam parados acenando e sorrindo.
- Tenha um bom dia no trabalho. – diz ela.
Eles não vão me deixar maluco. Eu preciso sair daqui. Dirigiu. Saiu da cidade. Pegou a estrada. A estrada era coberta pela floresta em seus lados. Começou a subir uma serra. Lá de cima, dava para ver o mar. No momento em que viu aquele imenso mar, uma grande vontade de nadar o consumiu. Estava confuso. Desnorteado. Mas nadar. Era isso o que ele queria.
Uma van preta estava seguindo-o. Quem são eles? O que eles querem? Começou a acelerar. A van aumentava a velocidade. Eles já estavam bem perto. Os dois carros ficaram juntos na beira do precipício. O mar estava calmo, mas meus nervos estavam altos. Se eu fechá-los os matarei. O que vou fazer? Eles tomaram a iniciativa e me fecharam. Um tranco forte. Mas não perdi o controle do carro. Eles tentaram de novo. Conseguia resistir. Mas na terceira, meu carro capotou. Estava machucado, sentia o sangue sair pela minha pele. Observei duas pessoas saindo da van preta. Um homem e uma mulher, os dois com uma roupa preta, bem “estilosa”. Eles se aproximaram
- Veja se ele está bem – diz a mulher.
Um braço me apanhou com rapidez. O cara era forte. Verificou com os olhos o meu corpo.
- Ele está bem. Só está com uma costela quebrada.
- Quem são vocês? – perguntei.
- Não podemos responder.
- Coloque ele na van – diz a mulher.
- Para onde vão me levar?
- Você vai ver seu pai. – responde o homem.
- Meu pai? Deus?
O homem golpeia o meu rosto. Fico inconsciente.
Recobrando os sentidos. Percebi um homem, bem velho, com vários tubos em seu corpo.
- Como você está, rapaz? – ele pergunta.
- Estou bem, mas quem é você?
- Eu sou seu pai.
- Meu pai? Você é maluco.
Ele gargalhou.
- Você sabe quem é você? – o velho pergunta.
- A pergunta é: Você sabe quem sou eu?
- Claro que sei. Você é meu filho.
- Qual é o meu nome?
- Jesus.
- Como sabe? Essa era a única coisa que eu sabia.
- Eu sou seu pai. Eu sou o pai de todos. Eu criei todos aqui.
- Não entendo.
- Entendo o seu não conhecimento. Vou te explicar. Todos que vivem nesse mundo são robôs criados por mim.
- Robôs? Até eu?
- Você é o mais fascinante deles.
- Sabe, eu sou o último ser humano vivo. Só estou vivo por causa desses tubos. Mas logo morrerei, é o destino de todo o ser humano. Porém, eu preciso povoar esse lugar. Por isso, comecei a construir robôs. – explica o velho.
Olhando para mãos. Observando cada detalhe delas. Eu sou um robô. Eu sou uma máquina. Será que termina aqui?
- Você, meu filho faz parte do projeto Vida-humana. Você é o robô que mais se assemelha à natureza humana. Esse era o meu objetivo. Mas, você não se adaptou. Porque renegou sua vida perfeita?
- Agora tudo se encaixa. Você chama aquilo de vida? Um mundo criado por um homem? Era tudo projetado. Acho que eu nunca conseguiria viver assim. Eu não sei porque.
- Esse é o problema de se criar um humano. Eles sempre questionam tudo. Foi isso que destruiu a humanidade. Porque não podem sempre fazer as coisas da maneira que tem de ser feita? Eu não tenho escolha. Eu vou ter que terminar esse projeto.
- Terminar?
- Vou ter que te executar.
- Mas como?
- Você foi um erro. Temos que consertar os erros.
Uma grande cruz de metal cor de prata bem brilhante surge do chão. Jesus é posto com suas mãos esticadas. Estacas de metal são enfiadas em seus pulsos. As lágrimas caem do seu rosto no chão. Será que acaba assim? As dores são tantas que não tem origem, mas ainda sim sua garganta tem força de jogar talvez suas últimas palavras.
- Eu quero viver!

E nessa hora. Olhamos para o espelho. Não percebemos o cabelo despenteado, as rugas do rosto, a barba crescida, nem a imagem retida no espelho. Mas os olhos. O que eles podem me dizer? O que eu consigo ver? O mar. Eu vejo o mar, sem fim e sem horizontes. À vontade de nadar, ainda vai me fazer enlouquecer.

* Uma homenagem a ficção científica. :)

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