quarta-feira, 4 de maio de 2011

A mariposa

Ela queria nascer de novo. Presa no seu casulo de pensamentos sufocantes que formavam uma crosta mais forte do que ela poderia imaginar, tentava se desprender dessas amarras sombrias, balançando-se para os lados, agitando-se a cada passo de uma batida do seu pequeno coração que aos poucos ia lhe dando a crença de que poderia ser feliz nesse mundo. Tinha a expectativa de que a vida fosse mais do que poderia prever, uma passagem de um lugar mágico, um sonho doido que a fazia sorrir por debaixo de sua proteção temporária, uma doce visita ao paraíso, imaginava cada elemento presente nesse mundo bordado por seus caprichos, excitando-se a cada respiração mais intensa, querendo desesperadamente abrir as asas e conseguir a liberdade de voar para onde quisesse, para onde pudesse, para onde fosse. E ela seria a mais linda, com as cores mais vibrantes que ao tocar os raios solares brilhariam para além do horizonte, todos ficariam admirados pela sua beleza natural e se emocionariam quando a encontrassem nua de seus preconceitos, passando pela sua própria avenida solitária. Na ingenuidade do seu viver, a mariposa pensava que era uma borboleta.
E foi assim que ela veio ao mundo, abrindo o limitante casulo de suas ações e esperançosa sobre o caminhar pela vida que estava tão perto de alcançar, com sua força de romper barreiras indispensáveis para seu crescimento. Percebeu-se diante de tudo ao mesmo tempo, ficando assustada no início e excitada logo depois, conhecendo a primeira folha em que pousaria, era verde e leve, sentiu sua textura e sorriu para o que via. Tudo era uma novidade, por isso, foi examinando cada parte daquele miúdo mundo e se encantando com todas as diferentes sensações que descobria. Querendo mostrar suas cores vistosas foi de encontro ao sol, que estava radiante e imponente, distribuindo seus raios para todos os lados, conectando-se com todas as coisas, vivas e mortas, de um calor que parecia penetrar na alma, mesmo sem querer. De asas abertas, encontrou-se com ele no meio do céu. Suas cores escuras não refletiram sua luz, e o calor a penetrou com uma violência arrasadora que ela poderia gritar de dor, sofreu com as primeiras queimaduras que recebia em seu breve espírito aventureiro e caiu, lentamente, tentando bater suas asas e sair do inferno, procurando uma sombra, um lugar onde não sentisse mais aquilo.
A sombra de uma árvore a acolheu, lentamente deitou no chão sobre a sua proteção e ficou na mesma posição, inerte em sua mente por alguns instantes. De seu abrigo, um tédio lhe invadia e seu ser não conseguia controlar a agitação de seu corpo que se debatia querendo sair dali, querendo exercitar seus músculos cheios de energia. A única coisa que ela precisava para sair daquele lugar era a coragem, e assim o fez, encarando o sol mais uma vez. Seguia por cima da floresta a olhando com afeto, sem se importar com o calor forte que vinha do norte, resolveu ir para o sul buscar algum aspecto grandioso de um azul, de qualquer azul. Afastando-se de sua floresta onde deu seus primeiros passos, encontrou um campo aberto, aparentemente sem fim e sorriu de sua alegria infantil, inocente sem precedente, uma novidade de sua verdade, sua visão estendida para o céu percebeu várias borboletas flutuando, jogando suas cores para todos os lados, descendo até as flores espalhadas pelo campo verde e subindo até o infinito. Aproximou-se com uma excitação à flor da pele, querendo e não chegar, com medo de não agradar, com receio de seu belo olhar, porém, assim o fez. Da sua chegada, ela viu uma flor azul, quieta entre várias outras ao seu lado, e pediu a sua permissão para pousar, não obtendo nenhuma resposta, delicadamente encostou seus pés nas pétalas de sua surpresa, e contemplou seu azul, se era o azul que ela buscava? Não sabia, mas aquele azul era da cor de sua felicidade, e se perdeu dentro dela, sem tempo, sem espaço, a beijou para que não se esquecesse, uniu-se a ela sem cerimônia como se fosse a última coisa a se fazer no mundo. Logo depois, algumas borboletas vieram e lhe perguntaram o que estava fazendo, respondeu que estava sendo feliz, retrucaram dizendo que uma mariposa não podia estar naquele lugar e que ela teria que partir. Abriu uma fenda de confusão em sua cabeça, pois ela era uma borboleta e essa era uma das únicas certezas que tinha, por isso tentou argumentar com as outras, mas suas palavras não foram ouvidas e ela foi expulsa de seu paraíso.
Apenas conheci um lugar e foi para lá que ela voltou. A floresta estava do jeito como ela deixou, e o sol estava mais fraco por causa do fim do dia. Adentro-se nela, passando pelas árvores, cambaleando meio bêbada, triste pelos recentes acontecimentos e se questionando se tudo aquilo que passou valia uma lágrima de seu choro, flutuou exausta e deixou seu corpo mole cair até a beira de um lago. Viu seu reflexo no espelho da água, contornos de uma mariposa apareceram para ela, e aquela imagem feia a fez tremer e se encolher querendo um novo casulo, gritando para si mesmo que queria nascer de novo, de nascer como uma linda borboleta para viver o seu desejo de azul. Pela solidão da noite e o cansaço do dia, ela adormeceu abraçando o seu próprio corpo, protegendo-o da maldita imagem que vira, sem forças para um último sentimento e temendo que água pudesse mostrar mais do que ela poderia aguentar. Na fortaleza do seu ser, ela não seria uma mariposa.
No dia seguinte, acordou com um animo diferente, e mesmo estando traumatizada e melancólica, decidiu não ficar lamentando e parada em sua inércia tímida, projetou suas asas para alto e voou, com medo e sem astúcia, encontrou o céu novamente, escolheu sua direção contrária e seguiu em busca de outro azul, de qualquer azul. Durante sua viagem, observou uma massa cinzenta ao longe, e por causa de sua incontrolável curiosidade, viu-se obrigada a chegar mais perto. Era uma cidade e seus olhos se animaram com uma nova possibilidade. Desviava dos carros parados em algum engarrafamento, admirou-se das pessoas andando pelas ruas em um único passo, sempre na mesma nota e de uma precisão robótica, encantou-se por suas cores cinzas, brancas, marrons e pretas parecidas com as que viu no espelho da água de sua própria face. Passou entre fumaças de escape, cigarro e fábricas, banhou-se das bebidas amargas e fortes, espantou-se com as construções gigantes do centro da cidade, inquietou-se com o barulho ensurdecedor que enlouquecia seus ouvidos e riu da diferente vida que se levava por aqui.
Com os olhos atentos, percebeu uma janela aberta e um rapaz fumando atrás dela. Ele estaca usando uma camisa azul e seu rosto despreocupado e sereno representava uma aspecto menos perturbador. Aproximou-se com o mesmo instinto que carregara até ali, hipnotizada pelo azul, sem saber se aquele azul era o que ela procurava. O rapaz se assustou e recuou e gritou para sua irmã, dizendo que havia uma mariposa no recinto. Ela tentava pousar naquele azul, talvez o azul de sua felicidade e uma paz aparecia toda vez em que pensava que estava perto demais. O rapaz continuava a desviar, e a repeli-la com as mãos, nervoso, gritava cada vez mais quando sua irmã apareceu. A mariposa pousava em algum lugar e depois se lançava para o seu destino, impune e contente, confusa, mas certa de sua iniciativa. A irmã percebeu a situação e partiu para dentro da casa. Ele dizia em voz alta para a mariposa não se aproximar ou para ir embora, porém ela não escutava e continuava a abrir as asas e ir de encontro aquele azul, apenas isso e sua determinação não a deixava descansar. A irmã voltou com um inseticida e quando a mariposa fazia uma nova tentativa foi atropelada por seu jato venenoso, obrigando-a a pousar em qualquer canto. Cada vez mais, ela se sentia fraca e o veneno corria pelo o seu corpo, embriagando seus sentidos e descontrolando seus pensamentos até que ela caiu no chão. O rapaz e sua irmã se animaram com sua vitória e sucesso e foram embora deixando-a sozinha. A mariposa apenas olhou o seu azul cada vez mais distante e lembrou de todos os azuis que perseguiu, sorriu para o que vivera e fechou os olhos para o amanhã.