segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

As únicas

Fico aqui pensando se aquelas mentiras apareciam na inconsciência dos homens pelo momento conturbado de suas cachaças ainda estarem no copo esperando que a tristeza pudesse suportá-los, mas não sei bem. Pensam que bêbados podem ser exaltar ou controlar a situação, mas não conseguem aguentar nem a si mesmos que choram pelo descuido de deixarem a mostra a sua dor, pânico de seus olhos moribundos, perturbados pela carência do que sentem e presos no seu próprio desabafar. Ainda lembro daqueles olhos pequenos, cheios de lágrimas que nunca caíram, a boca áspera e machucada com bafo de álcool infestando minhas narinas quando ele falava que me amava, e eram tantas e tantas palavras que eu me acabava me perdendo nelas, não sabendo como tinha começado, ou o que significava todas elas, porém sabia onde isso tudo ia terminar, na crença de mais palavras construídas por um estado de espírito abalado, neutralizado pelo néctar dos deuses, o paraíso dos viciados em matar o sofrimento com gotas de orvalho vendidas em qualquer esquina. Não havia escolha em abraçá-lo, esperando que alguma ternura aparecesse de algum lapso de memória, ou gesto singular de alguém sensibilizado com o momento, mas apertava forte, como um touro, me esmagando o peito, machucando minhas costas, que me proporcionava uma dificuldade de respirar pela pressão em meus pulmões, depois ele parecia sereno, fechando os olhos bem devagar, até talvez, dormir em meus braços, pois afrouxava as amarras e amolecia o corpo querendo se espatifar no chão, então sobrava para eu segurá-lo e jogá-lo em algum canto qualquer para ele apagar por aquele dia.
No dia seguinte, dizia que não lembrava de nada, e pedia desculpas esfarrapadas pelo o que sua mente alcoolizada tinha feito, pois a culpa era do álcool que tinha atrofiado suas perspectivas, que tinha castigado suas ambições, destruído seus sonhos mais íntimos e matava sua esperança que a vida pudesse se abrir em um leque de novas possibilidades. Não podia deixar que tudo terminasse assim. Pedia uma regeneração. Ele reclamava que nada dava certo, e começava a gritar pelo impulso da ressaca que deixava sua boca seca e a voz meio rouca. Argumentava com toda a raiva que transbordava de sua causa perdida, não me deixava responder aos seus insultos, não conseguia dizer uma única palavra, então também elevava a minha voz, e ficamos cuspindo palavras que ninguém mais escutava, apenas as paredes absorviam aquela algazarra. No final, ele resmungava que a culpa de tudo aquilo era minha. Xingamentos se chocavam no ar. E na calmaria do cansaço em dizer, o silencio invadia nossa privacidade e cada um ia para o seu canto pensar no que tinha acontecido. Descobrimos que não dava mais, e fortes em nossa decisão de pessoas maduras, desistimos do nosso passado, cravamos as estacas em nossos corações que sangravam há muito tempo, acomodados com esse estilo trágico de vida. Ele ia embora, e eu ficava.
E ficava como sempre fiquei, esperando que tudo pudesse ser diferente. Tantos e tantos homens passaram pela minha vida, e como nem os orixás pudessem revelar, contra toda a espécie de destino pronto, tudo se repetia, com todos os passos, com todas as cartas marcadas, e o mesmo final sempre igual. Não me arrependo de nada, não posso ter esse luxo, seria como dizer que errei, ou que a culpa sempre foi minha, mas lamento por ainda guardar uma poesia escrita por ele em papel de caderno amassado depois de uma noite de amor na qual só me lembro por causa dessa lembrança, ainda presente, cheias de palavras, talvez, sinceras, talvez, as únicas.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Serenata do amor das antiga

toco com dedos pesados as cordas do violão
para uma serenata de amor das antiga
tremo o corpo que sofre com o calor de verão
e com a aparição da mulher mais bonita

sou corrumpido pela enchurrada de asiedade
de onde surge a sensação de fuga
mas as pernas não se movem por trás da cidade
que na espera de baixo me abriga

exausto, ainda há força para cantar mais uma
no rastro de teu perfume que chega na rua
me lastro na esperança do que nos una
espio do alto tentando te ver toda nua

tenho até uma rosa na mão a lhe esperar
ainda te chamo pelo nome do meu cantar
olhos atentos na janela do seu despertar
cansados de te vê e não poder te tocar

levando as horas nas costas, desça agora
antes que chegue a hora, de ir embora

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

No meu carnaval...

Quero fazer
um carnaval com seu coração
Vem conhecer
as marchinhas do meu cordão
Não deixe de ver
a alegria nascer do meu folião
A banda descer
através de um corpo de união


do meu ser
não se sinta totalmente envergonhada
É do crescer
desses olhinhos pequenos de mulher
que no viver
cai a fantasia dessa mascarada
e no amanhacer
poderemos fazer o que quiser

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Apenas ela

Olhando de uma forma discreta para os diversos
caminhos incompletos de um pequeno olhar
escrevo esses mesmos restos de versos
que teimam em violar o meu despertar

Pois já acordo com o velho mau humor
para manter uma distância segura de você
deixo que a tristeza seja a causa da dor
onde dizem que tudo pode envelhecer

Vejo o amor sair pela porta que entrou
levando tudo o que ele já me mostrou
finjo não me importar
mudo do que aguentar
corro para a janela
esperando ele voltar
mas era apenas ela

De tudo que me faz mal
mal pode esperar o carnaval
para desejar essa intensa folia
sobreposta pela eterna melancolia

Surto sufocante que vem com a noite
estado paralítico da minha sorte
não sinto as lágrimas para derramar
não consigo perceber esse lamentar

o que nos mata lentamente, petriifica
cada passo nosso por esse pesado chão
a solidão de todos nós é filha única
apenas ela, amolece qualquer coração

domingo, 2 de janeiro de 2011

Bela Morte

Aproveitava os raios solares da metade do dia para estender as roupas no quintal apertado nos fundos da casa de um subúrbio qualquer, na esperança que elas já estivessem completamente secas no fim da tarde. Mesmo com o peso da idade em suas costas cansadas, não abdicava de suas tarefas habituais de esposa responsável que aprendeu logo na adolescência através de sua mãe e que agora devia estar orgulhosa debaixo da terra. Não as fazia com o gosto necessário, porém se tornaram parte de sua vida terrena, tão serena que não reclamaria do que tinha a fazer, apenas faria. Tinha saudades mesmo era das tarefas de mãe, árduas, melancólicas, mas tão carinhosamente ocultas que a nostalgia brincava com seus sentimentos mais profundos, compreendendo o exagero natural de ternura que não saía com um banho de água gelada no frio aterrorizante. Passou para a sua próxima tarefa comum, contudo eficaz no aprisionamento do tédio, lavar os pratos depois do almoço.
Ele não voltaria tão cedo. Saiu de casa dizendo (como sempre dizia) que ia dar uma volta por ai, ver as pessoas na rua, e depois voltar. Às vezes, dizia que compraria o pão para o café da tarde, mas nunca cumpriu essa promessa. Ele sempre ia para o mesmo lugar, de onde só se retirava quando a noite se apresentasse e ficasse ao seu lado até chegar a hora de ir embora. No bar, sempre encontrava pessoas conhecidas e por lá ficava, ficando, ficará, ninguém sabendo até quando. Hoje era para ser um dia especial. Era o dia de nossas bodas de ouro, que o nosso filho, gentilmente, se ofereceu para dar um churrasco aqui mesmo em nossa casa para parentes e amigos, um presente para nossas vidas perto do fim, uma homenagem para um casamento duradouro. Mas, ele não voltaria tão cedo.
Durante muitos anos andou esse mesmo caminho até o bar da esquina. Todo mundo o conhecia, e falava com todos com um entusiasmo e um sorriso. Ele era daqueles típicos velhos que vão ao bar para tomar aquela cachaça amiga ou uma cerveja bem gelada todo o santo dia. É um ritual religioso, feito passo por passo, trazendo um prazer compreendido apenas por aqueles que o conhecem. E mesmo que por um minuto, ele estivesse sozinho, logo alguém que como ele vinha para desfrutar desses delírios, aparecia, conhecido de longa data, ou puxando uma conversa qualquer depois da primeira descida de uma aguardente. Cumprimentou o dono do bar e zombou da derrota do seu time no dia anterior. Acomodou-se na primeira mesa que viu e já pediu uma cerveja gelada. Encontrou com mais alguns companheiros e ali beberam e gargalharam como de costume. Falavam de muitas coisas, lembravam histórias passadas, discutiam sobre os times de futebol, davam conselhos aos mais novos, brincavam com as mulheres mais novas, e reclamavam de suas esposas. Cada vez mais eufóricos, cada vez mais vivendo o mundo deles, um mundo inventado e divertido, abençoado pelo diabo e perdoado por deus.
As horas passavam e nem sinal dele. Ela sabia disso. Sempre soube. Teria que ir lá onde ele estava e arrastá-lo para se arrumar para esse dia incomum. Chegaria de mansinho e pediria para que ele fosse para casa. Não. A raiva guardada desde cedo ia agora mostrar suas garras nas verdades silenciadas pelo tempo. Trancou a porta com a chave e saiu de casa aborrecida com a falta de presença daquele que a prometeu voltar para a casa. Era a primeira vez que ele tinha a visto chegar assim. Era a primeira vez que ele a tinha visto ir até lá. Assustou-se com as palavras que lhe feriam, porém como tinha preparado uma defesa estrategicamente armada, apontou os canhões e atirou palavras do mesmo calibre, talvez mais mortais e perigosas, e a fez naufragar em lágrimas, desaparecendo entre as pessoas, tentando esconder o rosto choroso, voltando para o abrigo mais próximo da dor. Ele sentiu o peito esquisito, uma culpa que se instalou e foi abafada pelos dizeres de seus companheiros, falando que era assim mesmo que as coisas aconteciam, dialogando sobre suas esposas e como elas agiam enchendo o saco deles a todo o momento. Ele viu o dia escurecer, como sempre, mas dessa vez de uma forma diferente. Sabia que isso não tinha acabado. Não poderia acabar assim. Bebeu o último gole de cerveja e voltou para a casa.
Os convidados chegavam a todo o momento, e o filho deles é que estava recebendo as visitas e as deixando a vontade. Quando o seu pai chegou foi direto falar com ele, esbravejando e perguntando o que ele tinha feito com a sua mãe. Explicações sem fundamentos, desentendimentos comprometidos e muitas palavras em vão estreavam entre um e outro. Uma conversa que tinha saído fora dos trilhos. Eles se olharam e o seu filho pediu para ele se arrumar. Ele obedeceu. A mãe já estava arrumada e tinha obrigatoriamente se recomposto do ocorrido para não alertar os convidados. Jogava sorrisos frouxos e conversava amigavelmente. Havia bastante comida e bebida. Latinhas de cerveja amontoadas procuravam espaço em caixas de isopor, enquanto que pedaços de carne crua eram assados, linguiças coradas e frangos dourados eram distribuídos entre os convidados. Tomou um banho bem tomado. Refletia sobre o ocorrido, mas não chegava a lugar algum. Vestiu o seu terno meio velho, mas cuidadosamente lavado e passado por sua mulher, dando-lhe um aspecto quase novo. Foi para o quintal, onde todo mundo estava, meio receoso e tímido, beliscou uma carne que estava saindo naquele momento, e depois pegou uma cerva quase gelada. Não falava com ninguém, apenas observava tudo sem emoção. Algumas pessoas vinham lhe falar dando os parabéns e ele agradecia com um meio sorriso. Parado no seu canto, de relance avistou sua esposa falando com os convidados, se sentiu acuado e sem saber o que fazer, terminou sua latinha, jogou-a no lixo mais próximo e sacou outra da caixa de isopor.
Dessa vez, foi ela que o viu ali, no seu cantinho solitário. Primeiro fingiu que não viu. Também não sabia o que fazer. Tinham construído um abismo imenso feito com o suor das palavras miseravelmente ditas. Quando os demônios estão soltos, rasgam a pele fazendo pequenas feridas em todas as partes do corpo, demônios mais humanos que divinos, mais terrenos que celestes, não evitam os sofrimentos postos a prova, e os pecados vem vão como brisas do mar de almas aflitas pela solução das eternas pendências. Apesar de tudo, ela o fitava na esperança dele vencer esse abismo e trocar algumas palavras mais amenas com ela. Ele sabia o que tinha que enfrentar. Terminou sua latinha de cerveja, deixou em qualquer canto e a olhou fixamente até ela devolver o olhar. Foi se aproximando como se não quisesse nada, porém queria tudo. E num susto meio louco, eles se encontraram como se nunca tivessem se conhecido. Mesmo meio tonto, com álcool no sangue, mas com o tato experiente, pois seus braços ao redor do corpo dela, um abraço inusitado, parecia uma canção tão bela. E aquele calor que o choque de dois corpos produz intensificou suas manifestações de afeto, surgindo então um beijo delirante daqueles que aparecem em momentos raros de um casamento antigo. Ele ficou excitado como um jovem de vinte anos, e poderia contar nos dedos quantas vezes se sentiu assim depois dos sessenta anos. Arrastaram-se para o quarto intacto há vários anos. Despiu-a como um novato e a desejava nos estranhos caminhos amorosos, com a pele enrugada, os peitos caídos, a beleza tão prejudicada, mas uma vontade de possuí-la tão imensa quanto na primeira vez que transou com ela. Uma furiosa paixão acumulada se libertou de suas amarras e se deixou acariciar, bajular, penetrar e gozar várias vezes até o seu o fim, indo cada para um lado, olhando para o teto com uma felicidade perdida há muito tempo nesses lençóis limpos. E nesse momento, eles esperavam ansiosamente que a morte viesse para levá-los embora. Ele não voltaria para o bar. E ela não recolheria a roupa estendida no dia anterior.