terça-feira, 8 de abril de 2008

Últimas lembranças

Últimas lembranças

Eu não consigo enxergar. Eu só consigo lembrar, de quando eu era criança. Minha infância foi maravilhosa. Vivíamos no campo, meu pai tinha uma pequena fazenda, criávamos gado e plantávamos a nossa própria comida. Lembro, quando eu e meus irmãos íamos tomar banho no rio, era uma festa. Um dia, nós fomos para a parte mais cheia do rio, nosso irmão caçula tinha medo de entrar no rio naquela parte. Então, eu o empurrei para a água. Ele caiu, nós ríamos. Mas ele não voltou. Então, nosso irmão mais velho pulou na água e nós ficamos desesperados, esperando. Ele saiu da água com o nosso irmão nos braços, nós o colocamos no chão e ele cuspiu e tossiu, estava bem. Não tão bem assim, pois ficou com medo de água por muitos anos. Me perdoe irmão.

Eram tempos difíceis, nosso pai teve que vender a fazenda, por motivos que desconheço, talvez não entenderia se soubesse. Fomos para a cidade. A vida na cidade era muito diferente, prédios, fábricas, máquinas, muitas novidades para mim. Nossas vidas pioraram muito, morávamos em um barraco, às vezes passávamos fome. Meu pai conseguiu um emprego em alguma fábrica, quase não o via e chegava sempre cansado. Ele e minha mãe brigavam muito. Meu pai queria que nós trabalhássemos, mas minha mãe não, ficavam nesse impasse que acabava gerando brigas, às vezes violentas. Eu tinha uma ligação muito forte com a minha mãe, pois ela sempre estava perto de mim, e contava suas experiências e ensinamentos de sua vida. Ela me ensinou a ler, e eu era o único dos irmãos que lia alguma coisa. Minha mãe dizia que eu era muito inteligente e que tinha que me focar nos estudos. O meu pai queria que nós trabalhássemos.

Nós crescemos e todos os meus irmãos começaram a trabalhar, menos eu. Mesmo com mais pessoa trabalhando, a situação em casa não melhorava e já chegava num limite. Os conflitos em casa eram cada vez mais freqüentes, e agora o meu pai me acusava da nossa condição de miseráveis, por não estar trabalhando. Meu pai nunca gostou de mim, não sei exatamente porque, mas acho que ele tinha ciúmes da minha mãe e eu. Um dia, eu acordei e senti que havia alguma coisa errada, escutei alguém chorando, era minha mãe, ela estava em prantos, meu pai tinha partido poucas horas antes, eu nunca mais o vi. Ela me culpou pelo acontecido e disse que não queria mais me ver, então eu também fui embora. Depois de algum tempo soube que ela tinha se matado. Chorei como nunca antes. Me perdoe pai, me perdoe mãe. Nunca mais vi meus irmãos. Sinto saudades.

Não podia deixar de lembrar dela. Eu consegui sobreviver, estava trabalhando em um colégio, como professor. Tinha uma pequena casa, minha vida estava estável. Em um dia de trabalho como outro qualquer, ouvi falar de uma professora nova que tinha chegado para substituir um professor que se aposentou. Não era possível ser uma mulher, era um anjo. Eu me apaixonei na primeira vez que ela olhou para mim. Como o ser humano pode sentir uma coisa assim? Era tudo novo pra mim, mas mergulhei nesse mar até o fundo. Então me aproximei, a conheci e mais me encantei com ela, por suas palavras, pelos seus olhos, pelo seu sorriso. É difícil entender, eu não sei, eu me sentia bem, como se estivesse vivendo a vida pela primeira vez. Ficamos amigos, conversávamos por horas, falávamos do passado e do que virá. O tempo passava e minha angustia aumentava. Porque é tão difícil falar para alguém que você gosta dela? Então estávamos lá, eu e ela, em um banco numa praça. Minhas mãos tremiam, meu corpo suava, meus olhos piscavam, minha boca seca não conseguia pronunciar nenhuma palavra, eu só escutava. Quando ela parou de falar, veio o silêncio, como se não tivesse ninguém ali. Então o meu corpo frio pela neve que caia, nessa tarde de inverno, ficou quente, segurei sua mão e finalmente palavras vindo de dentro do meu corpo saiam pela minha boca... nos beijamos. Nunca mais esqueço desse momento.

Nós tivemos dois filhos. Eles são meus filhos agora, mas antes, talvez não o fossem. Uma grande crise econômica se espalhou pelo mundo todo. Nós perdemos nossos empregos. A miséria tomou conta das ruas. Nós mudamos para um barraco parecido com o que eu morava quando criança. Não tinha comida. Não tinha nada. Todo dia eu saia de casa para procurar algum emprego ou alguma coisa que pudesse me dar algum dinheiro para poder sustentar os meus filhos. Meu garoto de dezoito anos e minha filha de um ano. A vida se tornou difícil. Eu disse vida? Estava difícil sobreviver. Começaram a ter brigas em casa. Minha relação com minha mulher e meus filhos ia se desgastando a cada dia. Eles reclamavam por comida, por roupas, seus olhos pediam um abraço, um beijo, um conforto. Eu estava longe demais, estava precisando disso tanto quanto eles. Comecei a gastar o único dinheiro que conseguia na rua. Chegava bêbado todo dia em casa. Os conflitos se intensificaram, alguns ficaram violentos. Minha mulher falava todo dia em ir embora, eu não a ouvia. Já não olhava mais para ela. Estava olhando para mim o tempo todo.

Um dia cheguei em casa, tão bêbado quanto os outros, abri a porta, não vi ninguém, mas escutei choros vindo do quarto. Andei lentamente, cambaleando, olhei para dentro do quarto. Estava a minha filha deitada na cama com a minha mulher segurando sua mão e chorando. Meu filho estava em um canto do quarto com as mãos no rosto, provavelmente, chorando também. Meu coração parou naquele momento. Me aproximei da cama e olhei para o rosto da minha filha. Um rosto sem expressão, vazio. Quando minha mulher me viu, exclamou: “Seu assassino! Você a matou!”. Ela veio para cima de mim, batia no meu peito com os punhos fechados, gritando até perder a voz, meu filho saiu do quarto correndo, mas eu fiquei estático, tudo parou, só olhava para o rosto dela. Ela morreu de fome, fazia três dias que não trazia nada para casa. Ela não conseguiu suportar. Chorei como nunca antes. Me perdoe filha.

Minha mulher foi embora. Nunca mais a vi, uma parte de mim foi com ela. Espero que ela me perdoe. Ficamos só eu e meu filho. Prometi para mim mesmo que ia cuidar dele. Nunca mais bebi. Eu e meu filho trocávamos poucas palavras, não conversávamos sobre nada. Como pode alguém não se importar assim? Não importa! O que importa?

Andando com as pernas doendo, sem rumo, sem direção. Lembro daquela voz, forte e errante me guiando para ouvi-la. Estavam todos lá, sentados olhando ele falar, discursava maravilhosamente. Ele dizia o que nós queríamos ouvir, o que queríamos falar, mas não falávamos. Aquelas palavras nos davam força, e acima de tudo, confiança. Palavras sobre o país, sobre nossas vidas! Queríamos as nossas vidas de volta! Gritava com paixão! Dava a mão para nos puxar para cima! E sairmos da nossa inércia e conformidade. Quando ele acabou, todos aplaudiram de pé. Estavam todos satisfeitos com as palavras. Um homem me chamou, o que seria depois um amigo, “você, não quer conhecer o partido?” ele disse. Eu disse sim. Conheci o partido, suas idéias e o homem por trás disso tudo. Comecei a militar no partido, fiz amigos e minha vida melhorou aos poucos. Até que o nosso partido chegou ao poder. Acabei conseguindo um emprego no novo governo. Minha vida ia de vento em polpa.

Um dia, um velho amigo apareceu, sim! Aquele que me convidou para o partido. Ele estava suando, disse que estava sendo perseguido pela policia do partido e pediu para ficar em minha casa. Eu devo obediência ao partido, perguntei o que tinha acontecido, mas eu nunca soube. Então a polícia bateu na minha porta. Meu amigo se escondeu. Um homem saiu entrando dizendo, “sei que ele está aqui, diga onde está”. Então o meu amigo apareceu, “me leve!”, ele disse. Nós acompanhamos o policial até a delegacia. Lembro da pergunta, “o que você estava fazendo com um foragido em sua casa?”. Ele veio até a minha casa, eu não pude fazer nada, eu ia dizer a ele para se entregar, o partido acima de tudo. Lembro mais ainda da reposta, “então você é fiel ao partido? Você vai executá-lo”. O comandante colocou a arma na minha mão. Fomos para fora, estava frio. Eu apontei a arma para ele. Ele só suplicava por sua vida, mas eu pensava só na minha. Dei dois tiros, o primeiro foi quase inconsciente e o segundo foi de perplexidade. Sai correndo. Nunca mais toquei numa arma. Me perdoe amigo. Como que alguém pode fazer uma coisa assim? Eu não sei. Quanto sangue terei que derramar para acreditar que minhas palavras eram verdadeiras? Eu não sei. Será que assim eu me sinto mais vivo? Eu não sei. Só sei que não sobrou nada para sentir, não sobrou vida para viver.

A guerra tinha chegado e meu filho tinha sido chamado para morrer nela. Eu não posso deixar! Eu prometi cuidar dele. Fui imediatamente até a alta cúpula do partido pedir que não mandem meu filho para a morte. “Ele vai morrer pelo país! Ele vai morrer pelos ideais!”, eles diziam, mas isso, não me convenceu. Fui para casa! Meu filho! Você tem que fugir! Ele não me ouvia. Nuca me ouviu. Você não pode ir para essa guerra! “Eu vou! Vou lutar pela minha pátria! Não sou covarde que nem você”, ele gritava. Não pude evitar, ele saiu correndo de casa. Acho que eu também sairia. Nunca mais o vi. Me perdoe meu filho. Abandonei o partido e me acusaram de traição.

Não foram os anos que passaram que fizeram com que eu me aproximasse da morte, mas as pessoas que saíram da minha vida. Todas elas se foram. Meus olhos estão se acostumando com a luz dos faróis dos carros estacionados, estou começando a ver. Um passo para trás e minhas costas encostam no frio muro com velhos tijolos. Estou começando a reconhecer meus amigos do partido, apontando as armas para mim.

Uma voz:

- Quais são suas últimas palavras?

Não tenho nada a dizer, só isso:

- Eu perdôo vocês.

- Não precisamos do seu perdão.

- Vão precisar... vão precisar... quando lembrarem.

Ninguém entendeu nada, então veio a ordem:

- Atirem!



obs: Em algumas partes utilizei português coloquial.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Conhecimento

Conhecimento

Conhecimento é libertador!
mas, cuidado!
Ele pode ser um prisão.
Nós conhecemos as palavras
nós conhecemos as idéias.

Um dia nós vamos conhecer...
conhecer os toques
conhecer os beijos
conhecer os olhares

e, principalmente,
conhecer quem está
ao seu lado.