sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Xícara da Despedida

- Eu não agüento mais ficar aqui.
- Não desrespeite a cidade sagrada!
- Longe de mim desrespeitá-la. Eu só quero é conhecer o mundo. Mostrar o que eu aprendi aqui, e aprender o que o ele me ensinar.
- Isso me preocupa. Tudo o que você precisa está aqui.
- Eu preciso de mais. Vou fugir amanha de manhã.
- Não faça isso irmão. Vai me deixar sozinho?
- O Dalai Lama te protegerá, e eu vou voltar. Não se preocupe.

Os dois irmãos se despediram, foram para suas casas. Será que ele vai mesmo fugir? pensava um dos irmãos, andando sem parar até chegar numa pequena casa. Ele foi direto deitar e não parava de pensar no irmão. O que ele poderia enfrentar no mundo lá fora? Suas crenças serão testadas, com certeza. O mundo é perigoso, espero que ele supere as dificuldades. Eu sei que não conseguirei fazê-lo mudar de idéia, por isso, vou dizer apenas boa sorte.
No dia seguinte, de manhã, um barulho na porta o acorda.
- Calma! Já vou.
- Oi irmão. Como está?
- Estou bem. Eu vim aqui me despedir.
- Entre um pouco.
- Está bem

Os dois se encaminharam para a sala, sentaram e se acomodaram. Olharam um para o outro fixamente até que um deles falou:
- Então irmão, você vai mesmo ir embora?
- Vou sim. Não quero discutir sobre isso com você.
- Tudo bem, eu entendo.
- Tome um chá, antes de ir.
- Está bem.

Um dos irmãos se levanta e caminha em direção a cozinha. Prepara calmamente o chá, fazendo pacientemente os processos de preparo. Ele volta com três xícaras em uma bandeja.
- O chá está fresco.
- Irmão, para que três xícaras?
- Uma é para você, outra para mim, e a que sobrou é para o seu retorno.
- Como assim?
- É a uma tradição antiga, quando alguém parte, nós preparamos um chá e guardamos até que a pessoa volte para tomá-lo. Admira-me você não saber disso.
- Eu não sabia.

Tomou a xícara quase no mesmo tempo que um relâmpago cai em direção a terra.
- Eu já vou indo.
- Até logo irmão. Cuide-se.
- Está bem. Até logo.

Então, saiu rapidamente, e quando tentava vê-lo, já saíra da cidade. Era uma viagem longa, ainda mais para quem ia fazê-la a pé. Seu destino era Pequim. Ele foi passando pelas vilas, por pequenas cidades, mas nada o surpreendia. Então ele continuava, e andou por muito tempo, até finalmente chegar em Pequim.
Pequim era um inferno. Milhares e milhares de pessoas passando, às vezes, com carroças transportando outras pessoas, ou simplesmente, andando para lá e para cá. Carros se amontoavam nas ruas mais largas. Mal dava para andar, tentava se esquivar, mas sempre trombava com alguém. Muitas pessoas, muitas casas, tudo isso era assustador, ao mesmo tempo, era incrível. Não sabia o que fazer, nem aonde ir. Como já estava anoitecendo, decidiu então procurar abrigo na casa de uma alma bondosa. Avistou um homem varrendo em frente a uma casa.
- Oi! Tudo bem?
- O que você quer?
- Eu sou um monge budista fazendo uma viajem. Será que você pode me dar abrigo? É só por essa noite. Amanhã sairei bem cedo para visitar o Templo do Céu.
- Não costumo confiar nas pessoas.
- Entendo a sua desconfiança. Mas não precisa confiar em mim, apenas confie nas minhas palavras sinceras.
O homem olhou com seriedade o monge, que tinha um rosto simpático.
- Está bem. Sinto no seu olhar que posso confiar nelas. Entre.
- Obrigado.

Era lua cheia, estava linda, ele pensava nas possibilidades e portas que se abriam diante dos seus olhos. Deitado numa cama bem velha, um pouco desconfortável, mas isso não incomodava. Estava com frio, sem nenhum tipo de agasalho, porém isso não importava. Eram pequenos detalhes, diante das novas sensações que sentia. Dormiu olhando para lua. Sonhou com seu irmão. Eles conversavam olhando para um lago. Seu irmão pedia para ele voltar para casa. Eu preciso disso, irmão. É um dos sentidos da minha vida. Não tire isso de mim. Eu vou voltar, me espere. Mas o irmão pulava no lago e desaparecia.

Acordou com uma gritaria nas ruas. Olhou pela pequena janela do seu quarto de hóspedes. Viu vários caminhões com pessoas na traseira apontando armas para alto. Outras no chão, andando, algumas com faixas, outras gritando. Parecia que alguma coisa estava acontecendo. Se locomoveu para outro aposento, onde estava o homem que o acolheu.
- O que está acontecendo?
- A revolução chegou a Pequim.
- Que revolução?
- A revolução comunista. Vão mudar esse país, espero que para melhor.
- Mudar como?
- Acabar com esse imperador que não faz nada pelo seu povo.
- Entendo.

Preciso saber o que é essa revolução comunista. Parece ser uma nova visão bastante interessante.
- Como que eu posso saber mais sobre essa revolução comunista?
- Pergunte a algum revolucionário.
- Eu farei isso. Obrigado pela estadia.
- Tudo bem. Adeus.

Saiu pelas ruas, havia muitas pessoas, mais do que de costume. Algumas gritavam:
- Viva a revolução!
- Viva o grande irmão!

O grande irmão? Que será esse grande irmão? Queria conhecê-lo. Começou a se aproximar das pessoas que tinham armas em suas mãos. Colocou a mão no ombro de um deles e disse:
- Amigo. Quem é o grande irmão? Como posso encontrá-lo?
- Quem é? É o grande Mao Tse-Tung, nosso líder revolucionário. Ele está aqui em Pequim. O traje do monge o denunciou. - Você é budista?
- Sou sim!
- Um tolo! Isso sim! A religião torna as pessoas ignorantes.
- Eu não sou ignorante.
- É sim! Você não sabe o que está acontecendo com o nosso país. Seja um de nós, a liberdade está diante de seus olhos. Não deixe o budismo te cegar.
- Ser um de vocês? Que liberdade?
- Olhe para povo, está feliz e contente. Eles estão vendo a liberdade.
- Tens razão, eles estão felizes.
- Entre no caminhão e venha comigo, vou te mostrar um pouco da revolução. Quem sabe você não queria participar do nosso exército?
- Tudo bem.

Os dois subiram no caminhão. Ao longo do caminho, várias pessoas iam acenando, mostrando um sorriso, uma esperança.
- Está vendo. Olhe as pessoas monge. Eles estão sorrindo de felicidade, pois sabem que estão encontrando a liberdade da opressão de um governo. Essa é a revolução.
- Não posso argumentar contra o que eu vejo, é impressionante realmente.
A cena se repetia, todo hora, parecia não ter fim, até que o caminhão virou e saiu de Pequim. Parou em um acampamento, onde alguns soldados estavam alojados. O monge adormeceu, dormindo em uma cama, no alojamento.
Acordou com o sol em seus olhos. Levantou-se. Um homem fardado, com uma postura ereta. Ele não caminhava, mas marchava. Aproximou-se do monge. Olhou-0 atentamente.
- Então você é o monge budista?
- Sim, sou eu.
- Nós temos um problema aqui.
- Qual?
- Você sabe. Nós estamos diante de uma revolução. Está acontecendo uma mudança de governo. Nosso grande irmão está reunido com outros membros do partido para resolver como o governo comunista se organizará.
- Eu entendo – disse o budista.
- Nesses novos tempos, será proibida qualquer manifestação religiosa em terras chinesas.
- Mas, porque?
- A religião é o ópio do povo. São idéias que distorcem a realidade. São idéias que são utilizadas pela elite para escravizar o povo.
- Mas isso não é verdade. – indaga o budista.
- É. Você está preso nas crenças budistas e não enxerga além delas.
Nesse momento acreditou nessas palavras. Será que as crenças budistas estão limitando sua consciência da verdade?
- Junte se a nós. Somos o futuro. Nós vamos construir a sociedade que mudará as direções da humanidade. O capitalismo morrerá e nós triunfaremos.
- Capitalismo? – perguntou o monge.
- Não sabe o que é capitalismo?
- Não.
- Nós temos alguns professores aqui. Eles serão os primeiros a ensinar os novos modos de viver. Todos os dias, eles dão aulas para nossas crianças, porque você não assiste?
- Está bem.
No dia seguinte, lá estava o monge. O Primeiro a chegar. Sentou-se. O professor chegou logo depois. Umas duas crianças também vieram. Havia um quadro velho, mas ainda dava para escrever nele. Uma caixa de giz que era para durar até o final do mês. O professor se apresentou, e começou a falar do comunismo...
Todo dia, o monge ia as aulas. Ele já não usava sua manta. Ele vestia uma camisa branca, e uma calça jeans. A cada dia que passava, o monge perdia o contato com a religião budista. Começava a se transformar em uma lembrança, quase sempre associada a seu irmão. Foi perdendo seus hábitos antigos, e praticando outros novos. Depois de alguns um ano, vivendo no alojamento militar, o monge tinha virado um comunista. Sua crença agora era na luta de classes. Sua alma pacifica se transformou em um leão rugindo. Surgiu um ódio pela burguesia e todos que eram contra o comunismo. A elite econômica que por séculos dominou o povo, agora ia desaparecer pelas mãos dos revolucionários. A religião sumiu do seu coração. Não fazia parte da sua realidade. Ele vinha caminhando, rapidamente. Chegou perto de um sargento que estava sentando, junto de uma mesa com alguns papéis em cima.
- Eu quero me alistar no exército.
- Está bem, preencha essa ficha.
Ele preencheu, como um lobo correndo atrás de sua presa. Entregou-a para o sargento.
- Soldado! Venha aqui.
Um soldado se aproximou.
- Dê a ele. Uma farda, uma arma.
- Sim, senhor!
O novo comunista acompanhou o soldado.
Já vestindo a farda e com uma arisaka (um fuzil japonês) sobre o ombro. Ele se apresentou a outro sargento.
- Então você é o novo soldado. Sabe atirar?
- Não, senhor.
- Não temos tempo, para você aprender. Terá que aprender no calor da batalha. O caminhão já está saindo. Entre no caminhão.
- Para onde o caminhão vai, onde vamos lutar?
- Estamos indo para o Tibet. Vamos tomar aquelas terras.
O coração dele parou. Ele logo pensou no irmão. O irmão poderia morrer. Ele não pode deixar isso acontecer. Tinha que encontrar seu irmão. Tudo ficou branco. Essa, agora, era sua única preocupação. Subiu no caminhão que partiu.
O caminhão parou em frente à cidade sagrada. O ataque já estava acontecendo. Tiros eram disparados. O sargento grita para todos:
- Vamos entrar!
Todos saíram correndo e invadem a cidade sagrada. O novo comunista só pensava em seu irmão. Onde será que ele está? Será que ele está em casa? Correu em direção a casa de seu irmão. Chegando, o viu. Ele estava em frente a sua casa, abaixado, com um rifle nas mãos. Nesse momento, largou seu rifle, colocou as mãos para alto, balançando-as, e correu ao irmão, gritando.
- Irmão! Irmão! Eu voltei!
O irmão olhou para o maluco que corria em sua direção e reconheceu. Era seu irmão. Os dois se abraçaram.
- Irmão! Você voltou.
- Eu voltei.
- Mas está diferente. Onde está sua manta?
- Eu não a uso mais.
- Você mudou mesmo. Está com a farda do exercito que esta nos atacando. Mas, eu não entendo. Você entro para o exercito chinês.
- Sim, eu entrei.
- Mas como você luta contra o seu país?
- Eu não luto por nenhuma nação. Eu luto pelo comunismo.
- Comunismo? Você está lutando pelos chineses! E o budismo?
- Eu não acredito mais no budismo. A china, agora, é um país comunista. Um país que poderemos ter uma vida digna. Onde as pessoas se olhem como irmãos, que nem eu e você. Vamos para lá. Volte comigo.
- Não eu não abandonarei as minhas crenças aqui. O que aconteceu com você?
- Eu vi. Eu vi a verdade. A verdade que o budismo não me contou. E que está cegando você.
- Que verdade? A verdade de matar nossos amigos? A verdade de destruir o que eu acredito? Isso para mim é uma tirania!
- Nós destruímos a mentira! Essa farsa onde você vive. Irmão, você não entenderá, agora. Vamos para Pequim.
- Eu não vou para Pequim. Ficarei aqui. Lutando contra vocês!
Um tiro é disparado. A bala alcança o peito do irmão budista. O sangue jorra, manchando a farda do novo comunista. Ele envolve o irmão com seus braços, e lentamente o coloca no chão.
- Não! Irmão! O meu Deus! O que eu vou fazer?
Seu irmão não expressa nenhum sinal de vida. Já era um corpo apenas. Lágrimas cairão de seus olhos. Seus joelhos bateram contra o chão. Ficou ajoelhado. Olhava para o corpo estático do irmão. Era tudo culpa minha. Eu tinha que ter ficado aqui. Nada disso era para ter acontecido. Levemente, levantou seu rosto. Olhou para dentro da casa do irmão. Não acreditou quando viu. Estava lá. A xícara. Ele guardou todo esse tempo. A xícara da despedida. Ele se aproximou. Olhou para ela. Encostou delicadamente na xícara. Ainda continha o chá. Estava quente. Todo dia, ele trocava o chá velho, frio, por um chá novo, quente. Levou-a até a boca e tomou calmamente. Todas as lembranças de seu irmão apareceram a sua cabeça, como um filme, lembrava de tudo. Enquanto lágrimas caiam de seu rosto, recordava-se de quando eram crianças e brincavam, correndo para cima e para baixo. Recordações...
Já não era mias budista. Já não era mais comunista. O que ele era então? Colocou a xícara na mesa. Caminhou para fora. Os tiros ecoavam. Ele andava, tranqüilamente. Sua mente não estava ali. Saiu da cidade sagrado. Olhou para as montanhas ao norte. Toda a sua vida, tentando encontrar as palavras que iam definir o seu caminho. Muitas pessoas acreditam em muitas coisas. Alguns acreditam que ser tudo é chegar à iluminação. Outros acreditam que se você for alguma coisa pode-se transformar outras coisas. O que ser então? Ele cansou de tentar achar as palavras. Simplesmente, seguiu andando, desaparecendo no horizonte, em direção as montanhas. Não importa o quanto tenha que andar, pois agora, ele mantém a esperança, de descobrir um lugar onde possa viver em paz.