quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Solitária flor

Era uma solitária. Tinha grades enferrujadas pelo tempo. Era pequena. Paredes revestidas com pedra sem polimento, que faziam pontas de vários formatos, espinhos de pedra, havia também, marcas de tudo quanto é tipo. Vários pauzinhos nas paredes que contavam o tempo, havia marcas de unhas, desenhos estranhos e uma frase, com letras bem grandes, no lado esquerdo do recinto, “Você nunca vai sair daqui” era o que dizia. Era úmida. Existia um balde para as necessidades, que eram recolhidos toda semana. Uma “cama”, feita de pedra, na parte inferior de uma das paredes. Na parte superior, na parede do lado da “cama”, tinha uma pequena janela com grades, por ela dava para ver a rua. Do outro lado, tinha várias barras de ferro. Sentado em um dos cantos da sala, estava um homem. Ele tinha uma grande barba, cabelos longos e estava imundo. Rugas e cicatrizes enfeitavam seu rosto que estava envelhecido, mas não pela idade, e sim, por estar naquele lugar. Ele vestia uma camisa, com vários remendos e alguns rasgos que provavelmente seriam remendados com o tempo. Vestia uma calça nas mesmas condições e um sapato sem sola. Seus braços estavam segurando suas pernas, e sua coluna estava inclinada. Sua cabeça estava apoiada nos braços cruzados. Mãos feridas pela tentativa de tocar nas paredes cheias de espinhos de pedra. O canto da sala o aquecia. Pouca luz jazia no recinto. O único lugar por onde ela entrava era pela janela com grandes. Um jato de luz. Isso não importava. Era até melhor. A escuridão o acolhia. Abria os olhos não envergava nada. Fechava os olhos não enxergava nada. Era confortante. Era um alívio. Era a única coisa que restara para ele.
Sons de passos. Alguma coisa batendo nas barras de ferro. O encarregado de vigiar os prisioneiros aparece. Estava com um prato na mão. Era o resto da comida dos cães. Não saberia dizer o que tinha ali. Mas a mistura, visualmente, era terrível. Ele colocou, pelo buraco de uma barra para outra, o prato no chão da sala. Olhou para o fundo. Não tinha muita luz, só deu para ver os pés do homem. Encarou a escuridão, se levantou e continuou seu caminho. O homem, no fundo da sala, engatinhou até o prato, com a mão, começou a comer aquela massa. Ele, mesmo com os olhos abertos, não enxergava o que comia. Nunca sentiu o gosto de nenhum alimento, então não fazia diferença para ele. Acabou. Levantou-se. Andou, calmamente, em direção a pequena janela na parede, pela qual entrava a luz. Começou a perceber a rua. Várias pessoas passando. Será que eu vou sair daqui? Não sei se algum dia eu fui livre. Acho que nasci aqui. Não tenho lembranças do mundo lá fora, só sei que ele existe. A vida ia seguindo pela rua. Nenhuma pessoa direcionava a sua atenção para mim. Todos ignoravam. Nem todas. Havia uma garotinha que passa vendendo flores todos os dias. Quando ela passa aqui em frente, ela olha para mim. Sempre muito alegre, ela me brinda com um sorriso. Minha expressão não muda, mas me sinto diferente. Será que eu vou sair daqui? Já estou me acostumando com esse lugar. Eu não sei viver fora daqui. Paredes e grades. Elas me conhecem. Converso com elas o tempo todo. Elas me escutam. Elas me compreendem. Não reclamam. Posso quase amá-las. Mas não consigo tocá-las.
Lá vem ela. Eu estava a esperando. A garotinha das flores. Vem caminhando, e cantando uma canção. Essa música é a única lembrança que tenho na minha cabeça. Era assim:

“Flores para o seu jardim.
Flores em suas mãos.
Flores para o seu amor.
Flores para alegrar o coração.”

De novo essas palavras enchiam o meu lugar. Elas eram vaga-lumes, voando. Tentava pegá-las, porém não conseguia. Ficavam passando pela minha vista, e sumiam quando eu piscava os olhos. Mais uma vez, a garotinha olhava para mim. Dessa vez, ela parou, e acenou. Esse gesto era para mim? Minha mão foi subindo devagar, e se movimentou para os lados, acenando de volta. Um pequenino sorriso apareceu. Ela sorriu de volta, e continuou a seu caminho. Ela sabe que eu existo. Será que eu vou sair daqui? Estava anoitecendo. Dava para ver a lua, não muito bem, mas dava. Estava mais brilhante. Mais presente. Talvez ela sorrisse para mim também, então retribuí com um sorriso tímido. Era uma coisa estranha. Muito estranha. Quando me viro e vejo a escuridão tomar conta dos meus olhos, eu deito na cama. Começo a falar com as paredes até pegar no sono.
Um barulho de chaves batendo umas nas outras me acorda. Meus olhos abrem lentamente. A porta da prisão estava aberta e o homem que cuida dos prisioneiros estava tirando a chave da fechadura. Do lado dele, estava um homem imenso. Muito forte. Mataria um urso com os braços facilmente. Seu rosto era sério. Ele me mataria só piscando os olhos. Meu Deus! Quem é esse indivíduo? Um medo apareceu, sem avisar. Os olhos dele diziam que ele me mataria só por diversão, que ele me espancaria só por tédio. O medo foi aumentando. Olhava para ele assustado. O homem entrou na sala. Colocou suas coisas no chão.
- O que você está olhando? – ele perguntou.
O medo estava entalado na garganta, não saia nenhuma palavra. A única coisa que eu pude fazer, e fiz, foi desviar o olhar.
- Estou falando com você. – ele insistiu.
Eu abria a boca, mas não saia som algum. O desespero começou a surgir, comecei a suar, a tremer. Ele vai me matar. Ele vai me matar agora. Talvez não seja ruim. A morte pode ser melhor que a vida. Para onde vou pode ser iluminado. Talvez eu possa ver a os raios solares em sua totalidade. Quem sabe eu possa sentir os gostos dos alimentos. Quem sabe não tenha quatro paredes me cercando. Talvez eu posso respirar um ar mais leve. Quem sabe para onde vamos? Talvez eu queira descobrir. Um dia eu descobrirei a morte. Mas e a vida? Nunca vou saber como ela é? Ela está lá fora. Não tenho coragem. Talvez não viva mais.
- Você é surdo ou está se fazendo de sonso? – pergunta o homem.
Ele me pega pela gola com as duas mãos e me joga no chão.
- Eu sei que você tem medo de mim. Você nunca vai sair daqui.
Ele sorriu mostrando todos os dentes.
- Você vai dormir no chão a partir de agora.
Balancei a cabeça positivamente. Ele, simplesmente deitou. Eu sentei no chão no meu canto de costume, e fui abraçado por ele. Estava quente. Eu não enxergava nada, nem mesmo o brutamontes, isso me acalmava. Como uma mãe que segura seu bebe no colo. Como uma pessoa que abraça seu amigo para confortá-lo. Como uma lareira que esquenta a família nos dias de inverno. Quando não se vê nada, se imagina muita coisa. Sabe quando se sente uma dor, mas invés de gritar, você tentar agüentar? Eu estou agüentando. Comecei a conversar com as grades, porém o homem reclamou. Disse para eu calar a minha boca. Eu não disse mais nada. Dormi.
Acordei. Devagar. O homem olhava para mim. Sério. Estava sentando na cama, com os cotovelos sobre as coxas, e as mãos seguravam a sua cabeça. Percebeu que eu acordava.
Até que enfim acordou. – disse o homem.
Por algum motivo, eu estava conseguindo falar,
- Quem é você?
- Sou o medo. – respondeu ele. - O seu medo.
- Meu medo? Eu não tenho medo.
O homem riu, gargalhou.
- Você tem medo de sair daqui.
- Eu não tenho medo de sair daqui!
- Não?
Apontando para as barras de ferro, disse.
- Essas barras estão podres, com qualquer golpe elas quebram. Porque você nunca tentou quebrá-las? – indaga o homem.
- Eu não sabia disso.
- Você sabia.
- Então vou quebrá-las!
Eu me aproximei das barras de ferro. Coloquei as mãos nelas. Elas estavam podres, enferrujadas, fragilizadas pelo tempo. Eu não tenho coragem. Balancei as barras, mas nenhum estalo surgiu. Onde está a minha força? Eu estou fraco. Balancei de novo. Nenhuma rachadura. Será que eu vou sair daqui? Eu não tenho coragem. Sou um covarde. O que será que existe lá fora? Talvez eu nunca descubra. Eu não tenho coragem. Meus braços tremem, eu não consigo evitar. Droga! Droga! Será que eu vou sair daqui?
- Então, não consegue? – perguntou o homem.
O homem solta outra gargalhada. Eu me distancio das barras. Não sei para onde ir. Não tenho muitas escolhas. Só os cantos das salas. Sento em um deles. Espero as horas passarem. Elas não passam. Demora uma eternidade para passar um segundo. Fico pensando. Não tenho lembranças. A única é a menina das flores. Será que ela vem hoje? É única coisa que eu espero. É a única coisa que eu espero desse dia. É a única coisa que eu espero da minha vida. Olho para as paredes. O que eu faço? Eu pergunto. Elas são caladas. Eu escuto alguma coisa. O canto de uma garotinha. Eu corro para a janela.
Lá está ela. O homem está dormindo. Tenho que aproveitar. Ela está cantando a canção. Eu estou esperando a sua atenção. O seu olhar em direção a mim. Esperança. Ela olha para mim. Esboça um sorriso. Eu devolvo o sorriso. Mas depois, inconscientemente, eu expresso uma tristeza, não consegui segurar. Não consegui evitar. Ela percebe. Ela para. Força o olhar. Coloca a cabeça mais para frente. Parece querer ver mais adiante, parece não estar enxergando. Ela se aproxima com seu cesto cheio de flores. Ela se aproxima cada vez mais. O que eu vou dizer a ela? Ela chega. Eu não digo nada. Ela se debruça na parede, e levanta os pés. Olha para mim. Sinto sua doçura. Sinto sua criança. Sinto um conforto. Sinto-me abraçado. Um calor. Um sorriso.
- Quanto é a flor? – pergunto.
- Eu não vendo. Tome, é sua.
Sua voz era forte, ma suave. Eu estiquei o meu braço e peguei a flor. O cheiro dela era delicioso. Nunca tinha sentido um cheiro como aquele. Era diferente.
- Sentiu o cheiro dela? – pergunta a garotinha.
- Sim. É muito bom.
- Sim. – responde a menina. – Adeus.
Não deu tempo de dizer adeus a ela, e nem agradecer pelo presente. Ela saiu correndo. Eu estava hipnotizado pela flor. Eu olho para flor. É linda. Começo a acariciá-la, como um corpo de uma mulher. Era belo. Esfregue-a no meu corpo, a partir do meu rosto, delicadamente. Minhas mãos machucadas sentiam suas pétalas macias. O cheiro tinha infestado o recinto. Um belo aroma. Era muito estranho. Que sensações são essas? Ficou a acariciando por horas. Sentindo-a. Será que lá fora é como essa flor? Como será o lado de fora? Uma vontade de conhecer se manifestava. Uma curiosidade. Queria sentir isso de novo. Enquanto isso, o homem forte e careca acordava.
- Que cheiro horrível é esse?
- É o cheiro de uma flor. – respondi.
- Uma flor? Onde?
- Está aqui na minha mão.
Ele espiou a flor na minha mão. Sua expressão de descontentamento foi visível. O medo retornava para me atazanar. O que eu vou fazer? O que ele vai fazer comigo?
- Jogue está flor fora. Ela está estragando o nosso lugar.
Olhei para a flor. Pressionei meus dedos, mas não consegui feri-la. Eu não posso. Não posso perder isso. Eu não quero mais ficar aqui.
- Não vou jogar. – respondi.
- O que? Está me desafiando?
Coloquei a flor em cima da minha orelha esquerda.
- Eu vou.
O homem gargalhou sinistramente, como sempre faz. Isso não intimidou.
- Tente quebrar as grades.
Eu me aproximei das barras de ferro. Coloquei as mãos nelas. Segurei firme. Eu preciso de forças. Sentia o cheiro da flor. Estava forte. Encostou nas pétalas dela. Estavam forte. O que será que tem lá fora? Será que eu vou sair daqui? Eu vou. Balançou as barras. Não aconteceu nada. Não parava. Nada. Não parava de balançar. Nada. Não parava. Parou. Começou a chutar. A socar. Será que eu vou sair daqui? Eu vou. Não parava. Não parava. Não parou. As barras racharam. Caíram. Pedaços por todos os lados. Será que eu vou sair daqui? Eu vou. Pulou os destroços e passou para o outro lado. Olhou para trás, estava o homem, agora fraco. E com uma expressão de surpresa e tristeza, parecia que ia chorar.
- Você vai me deixar aqui? – pergunta o homem.
Viro o olhar, finjo não escutar. Estava muito escuro. Por onde eu vou sair? Não conseguia ver nada. Corria! Corria! Corria! Sem direção. Para onde eu vou? Eu não posso ficar aqui. Corria! Corria! Corria! A escuridão tomava conta de seus olhos. Para onde eu vou? Corria! Corria! Corria! Até que parou. Sentia o cheiro da flor. Mas muito mais forte. Vindo da minha frente. Para onde eu vou? Seguiu. Corria! Corria! Corria! Um feixe de luz aparecia, muito fraco. Para onde eu vou? Seguiu. Corria! Corria! Corria! O cheiro ficava mais forte. Seus olhos começavam a ver. Era uma caverna. Encostava nas paredes com as mãos. Elas ainda machucavam, como na prisão. Adeus. A luz ficava cada vez mais forte. Começou a machucar seus olhos. O cheiro começava a quase sufocar.
Até que um clarão apareceu! Eu parei. Tudo branco a minha frente. Não conseguia ver nada. Mesmo com os olhos abertos. Mas tinha uma coisa estranha. Uma sensação. O vento passando pelos meus cabelos, pelo meu corpo. Que estranho. O cheiro da flor ainda está aqui. Meus olhos estão se acostumando. Vejo borrões. Eles vão se encaixando. Eu vejo o céu. Nossa. É azul. Nossa. Um campo com milhares de flores a minha frente. O cheiro das flores entra pelo meu nariz, sem sufocar. O ar é livre aqui. O vento se movimenta. Há alguns metros está a garotinha catando flores. Ela me vê. E sorrir. O que é isso? Nunca tinha visto isso antes. Uma descoberta. A mais preciosa. Cada cheiro. Cada toque. Cada visão. É mágica. Um sorriso. Meu sorriso. Sincero. Não há mais quatro paredes me cercando. O que mais tem para descobrir? Um mundo. As pessoas. Será que elas vão me ignorar agora? Será que elas estão no mesmo lugar onde eu estava? A solitária. Sempre vou guardar uma flor comigo. Uma flor. Uma parte do mundo. Agora parte de mim.

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