domingo, 1 de novembro de 2009

A trégua

Os três andavam pela rua. Um era careca e os outros dois tinham um cabelo baixo. O careca ia no meio, e os outros do lado. E claro, como você perceberia, eles eram brancos. Eles tinham orgulho disso. Na verdade, todo o sentido da vida deles estava relacionado com a sua cor. Eles eram brancos. A cor formada todas as suas características humanas. Era a sua alma. Seu espírito. Matariam e morreriam por ela. Como já fizeram muitos. Eles estavam nervosos. Estavam entrando em território inimigo e estavam desarmados. Eles precisavam fazer isso. Tinham a coragem do soldado na guerra. Lutavam por uma causa maior. Era o que importava. Chegaram no final da rua. Dois homens estavam de vigia, em pé, no meio da rua. Eram dois homens fortes. Os dois com um black power bem grande e penteado. E claro, como você perceberia, eles eram negros. A cor deles também dizia quem eram. Sua alma. Eles estavam com uma ak-47 cada um. Segurando com muita força. Dava para perceber o suor na arma. Estava muito calor. E eles já estavam ali há muito tempo. Os brancos chegaram perto.
- O que vocês brancos estão fazendo aqui? – perguntou um negro.
- Queremos falar com o seu líder. – respondeu o branco.
- Você acha que vamos deixar vocês passarem?
- Nós viemos aqui desarmados, como você pode ver. Temos um assunto em comum para discutir.
- Nós estamos em guerra. Só não atiro em você agora, pois a covardia não faz parte de nossas tradições.
Eles estavam em guerra. Como sempre, usaram as diferenças para construir os inimigos. Brancos contra negros. Já se tornaram mais que raças. Mais que cores. Eram exércitos. Lutavam por uma causa maior. A eliminação do outro. Apenas assim, a paz que tanto desejavam chegaria para a nova sociedade que ia surgir, fosse ela negra ou branca.
- Nós também não somos covardes. Existe uma situação que eu e seu líder precisamos discutir. É uma situação à parte da guerra. Vai contra os meus valores. E tenho certeza que também os seus. – diz o careca.
- Está bem. Nós vamos levar vocês até lá. Mas, se tentarem alguma coisa, atiraremos sem hesitar.
- Tudo bem. – concordou o careca.
Eles começaram a andar. E logo, chegaram em uma praça. Muitos pais brincavam com seus filhos no parquinho da praça. Todos negros. Todos felizes. Uma estátua imensa do Malcolm X estava no meio da praça. Ele estava com a mão esticada e o dedo apontando para frente. Em baixo, estava escrito, “Malcolm X, um dos grandes heróis da luta para a construção de um mundo negro. Em frente, meus irmãos”. Em volta da praça, estavam vários homens armados, preparados para a ação. Havia um museu da repressão branca, onde contava toda a história da escravidão negra e da diáspora africana. Escolas onde a educação foi toda repensada para a construção da nova sociedade negra.
Eles passaram pela praça. E chegaram em um prédio. Subiram alguns degraus. Mais homens armados. Uma porta se abriu. Um homem negro estava sentado em uma cadeira. Com o seu black power exemplar. Fumava um cigarro. E estava cercado de homens armados.
- Os brancos aqui, querem falar com o senhor.
O homem fitou os olhos dos brancos. E calmamente disse.
- O que vocês querem? Falem rápido e depois saiam.
- Quero oferecer uma trégua. – falou o careca.
- Uma trégua? Estão ficando sem forças?
- Não é isso. Deixe me explicar.
- Então explique.
- Não sei se você ouvir falar das duas bichas que moram na zona de conflito.
- Não ouvi falar.
- Eles estão nos atacando no ponto fraco. Estão dando abrigo e cuidados para os desamparados da guerra. Tanto negros quanto brancos. Estão dizendo a eles que nossas cores, tradições, nossas histórias não existem. Estão deturpando o que acreditamos. Essas bichas estão destruindo nossos valores. Precisamos fazer alguma coisa.
- Eu entendo. E concordo com você. Precisamos eliminá-los.
- Sim. Para isso, precisamos de uma trégua.
- Compreendo. Temos uma trégua.



O dia amanhecia outra vez. Havia acabado de acordar. Estava com um sorriso no rosto. Uma felicidade que invadia junto com a luz do sol. E entrava em sua vida, como entrava pelo quarto. Outro homem apareceu na porta do quarto.
- Eu fiz seu café da manhã.
- Obrigado. Já vou descer para comer.
Eles eram um casal. E claro, como você perceberia, eles eram gays. O problema era que um era branco e outro negro. O que complicava ainda mais as coisas para o mundo. O colorido de tudo em volta era o que eles viam. É difícil contar as cores. Distingui-las. Quando você está nesse estágio. Quando você não dá nomes às cores. Apenas as vê. Cada hora de uma forma diferente. Em transição. E tudo muda de cor. E a cor muda de forma. Ele desceu. Havia uma sala. Com várias camas. Já estava cheia de gente. Algumas mulheres, alguns homens, mas a maioria crianças. As maiorias das crianças tinham perdido seus pais. Cada dia que passava, mais pessoas chegavam. Pedindo ajuda. Tinham perdido tudo, ou todos. Lá estavam negros e brancos. Alguns se toleram, outros não ligavam. Alguns queriam sair dali rapidamente. Não aguentavam. Ignoravam que o casal que o ajudavam era gay. Eles são gays, mas estão nos ajudando. Alguns não aceitavam e iam embora. O café da manhã estava pronto. Todos comiam na mesma sala onde dormiam. O casal discutia que estavam ficando sem espaço, precisavam de outro lugar. Eram tempos difíceis. Havia alguma coisas neles. Alguma força. Todos percebiam. Ninguém sabia de onde vinha. Eles não reclamavam. E faziam com gosto. Ninguém entendia. Davam beijos na frente de todos. As pessoas tentavam evitar. As crianças eram as que menos se importavam. Brincavam o dia todo. E adoravam os dois. Eles contavam histórias engraçadas, faziam brinquedos malucos de madeira e outros materiais e se fantasiavam de tudo. Eles queriam que a guerra acabasse.



- O que está fazendo aqui moleque?
- Só estou olhando, tia.
Ele era um menino. Um menino negro. Sujo e maltratado. Sozinho. Olhando com seus olhos arregalados aqueles doces deliciosos que seu paladar nunca tocou. Porém, a dona da loja não queria que ele ficasse ali. Estava espantando os clientes. Ele estava parado, imaginando aquele doce na sua boca. Volto a si com os gritos dela. E saiu caminhando. E foi por ai.
- Hei! Moleque.
Um homem alto, magro, negro e com um black power estiloso o chamou. O menino foi até ele.
- O que aquela branca fez com você?
- Ela me expulsou. Eu só estava olhando os doces.
- Onde estão seus pais?
- Morreram.
- Garoto. Você é negro. Você faz parte da raça negra. Como pode ficar esmolando pela rua? Sem destino e sem educação?
O garoto ficou indiferente. Mas gostou do que ouviu.
- Você sabe que estamos em guerra?
- Eu sei.
- Você tem que lutar no nosso lado. Você tem que afirmar que é um negro. Vamos, vou te levar até onde nós estamos construindo o começo.



Alguns brancos e negros se encontraram. Era hoje. Dariam um jeito nessas bichas.
- O negócio é o seguinte. Nós vamos lá. Libertamos aqueles oprimidos. Cada um leva os da sua cor. Cada um pega um. Vocês ficam com a bicha branca. E nós ficamos com a bicha negra. Certo?
- Certo!
Eles foram andando. Todos fortemente armados. Pareciam que iam enfrentar tanques. Brancos e negros unidos. Andando juntos. Chegaram. Apontaram as armas. Contra esse poder nada se pode fazer. Todos saíram correndo. Alguns não queriam ir, foram mortos. Outros ficaram aliviados por verem outros compatriotas. As bichas levaram uns tapas no rosto e foram humilhados na frente de todos. E cada grupo levo o seu.



Era uma sala escura. E o homem branco e gay estava agora todo ensanguentado sentado no meio dela. Ele era forte. Eles se surpreenderam.
- Como um branco como você pode virar uma bicha?
Nada respondia e levava um soco no estômago. O torturaram por dias. Até ele dizer que ia fazer um tratamento para ser homem de novo. Um homem cristão. Ele aceitaria Jesus e seria aceito. Participaria da comunidade e compartilharia as suas crenças. Logo depois, ele foi visto andando por uma ponte. Foi à última vez que alguém o viu.



O homem negro e gay foi colocado no muro. Com vários fuzis apontados para ele. Ele estava com medo. Pensava no seu no parceiro. Talvez ele estivesse bem. Nã podia pensar no pior. Será que encontraria com ele de novo? E viveriam outra vez?
- Como um negro virou bicha?
- Você é que está dizendo.
- Então, você não é bicha?
- Eu não sou bicha.
- Mas, você namora um homem?
- Sim.
- Tudo bem. Nós podemos dar um jeito nisso. E questão de mudança. Talvez, seja uma doença. Um distúrbio. Uma anomalia. Com certeza, podemos tratá-la. O que mais me intriga é que você não aceita que é negro.
- Você é que está dizendo.
- Então, você é negro?
- Eu não sou negro.
- Olhe para sua cor. Sua cor é preta, não é?
- Sim.
- Então?
- Então, será você, quem decide, o que é o que, e quem é quem?
Ele parou e pensou.
- Se essa é a sua decisão, terei que executá-lo. Se você não consegue perceber a grande importância de ser um negro. Não pode fazer parte da nossa comunidade.
Ele fez um gesto com a mão. Uns homens trouxeram um menino negro. Agora, ele estava limpo, cheiroso e bem arrumado. Estava com um sorriso no rosto. Estava brincando na praça. Com outro gesto o líder o chamou.
- Bom garoto. Acho que você já tem idade para saber o que é ser um negro nesse mundo. Traga a arma.
Trouxeram uma pistola. Era bem leve e de fácil manuseio.
- Está vendo aquele homem ali. – E apontou com o dedo.
O menino afirmou com a cabeça.
- Você acha que ele é um negro. Um igual?
O menino afirmou com a cabeça.
- Eu sei que na aparência ele se parece conosco, mas ele não é um negro. Não tem o espírito negro que os nossos antepassados lutaram tanto para conseguir. Para deixar esse legado para nós. Ele não tem a nossa alma. Entendeu?
O menino afirmou com a cabeça.
- Para provar que você é um negro de verdade. Para provar que o seu espírito é negro. Eu quero que você o mate. Mate um homem que não merece viver. Um homem que não se enquadra dentro da nossa sociedade. Você quer que ele seja um estorvo para a nossa nova sociedade que nos aguarda, que estamos lutando tanto para construir?
O menino pegou na arma. Estava tremendo todo. Tinha que fazer. Ele era negro. Sabia disso. Tinha orgulho disso. Todo o sentido da vida dele estava relacionado com a sua cor. Ele era feliz agora. Não era mais maltratado. Sem isso, ele não era nada. A cor formada todas as suas características humanas. Era a sua alma. Seu espírito. Mataria e morreria por ela. Como já fizeram muitos.



Nos últimos minutos de vida, dizem que a vida passa como um filme. Mas, não foi assim com ele. Apenas algumas palavras que ficaram na sua cabeça. Queria que todos os escutassem. Queria que todos o entendessem. Para ele, não era mais um mistério. O colorido de tudo em volta era o que ele via.

Eu queria apenas ver
além de duas cores.
Eu queria apenas amar
além de dois sexos.
Eu apenas queria sentir
a vida além desse mundo
Será que nós conseguiríamos?
Quem nos impediria?
Quem atiraria?

A trégua acabou. A guerra recomeçou.

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