sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Quando o lobo não caça mais

Estava na cama desde que acordou. Não conseguia parar de pensar no que ele nunca parou de pensar. Muitos anos se passaram e ainda estava na cama. Tinha alugado um quartinho de uma senhora muito simpática. Ela já era idosa e quieta. Oferecia bolos e outros doces que gostava tanto de fazer. Sempre que sentia o cheirinho de algo bom vindo da cozinha, apressava-se para saber o que a senhora tinha feito. Sempre comia um pedaço. O problema é que esse momento o fazia imaginar uma família. Lembrar que não poderia ter uma. E ficava essa mistura de alegria e tristeza. Depois de comer o que fosse, já tinha esquecido. Voltava para seus pensamentos preocupantes, angustiantes e exaustivos. Passava o dia inteiro escrevendo frases soltas em pedaços de papel diferentes. Tentava juntar as frases e extrair um sentido de tudo aquilo. Não conseguia. Perdido em fragmentos de uma vida sem sentido. Então lia. Livros e mais livros. Estava preso a todos os personagens que falavam sobre sua vida, tudo aquilo que ele não compreendia, mas aceitava. Pilhas e pilhas de livros estavam espalhados pelo pequeno quarto. E vários papéis estavam jogados pelos cantos. Ainda estava na cama com seus cinquenta anos. Às vezes, ia para um bar perto. Ficava olhando para as moças bonitas, e bebia sua cerveja. Ficava horas. Até não agüentar beber mais e ir pra casa bêbado. Resmungava sobre a vida o caminho todo de volta. E terminava se achando um “merda” quando chegava. Lamentou pela sua vida até as rugas aparecerem no seu rosto. Agora, ele ia fazer o que já devia ter feito. Já estava cansado dessa rotina entediante e desses pensamentos que iam e vinham, e acabavam com toda a esperança do dia que surgia. Guardava tudo para si mesmo e explodia quando bebia. Dormia e esquecia. Depois de anos tentando descobrir se tudo daria certo ou não, agora, já não importava mais. E sentia-se bem por isso. Até sorriu quando se levantou. Espreguiçou-se. E espiou o dia lá fora. Era um dia de sol intenso. O calor entrava no quarto junto com o vento. Não reclamou do mormaço. Havia uma vontade tão grande de viver intensamente aquele dia que o calor era apenas o coadjuvante. Tomou o banho mais prazeroso de sua vida. As águas tocavam e refrescavam o seu corpo com delicadeza. Fechava os olhos e escutava o barulhinho da água caindo. Fez a barba bem devagar. Sua atenção não ficou presa no espelho. Saiu do banheiro cheiroso. Vestiu a roupa que mais lhe agradava. Quando abriu a porta do quarto, sentiu o cheirinho doce vindo da cozinha. Não hesitou e foi direto para lá. E lá estava a senhora. Andava devagar e sentia dores na coluna, mas nunca reclamava. Estava tirando um bolo de chocolate do forno, quando ela o viu chegar.
- Bom dia – disse sorrindo.
- Bom dia – respondeu.
- Quer um pedaço de bolo?
- Claro – respondeu com um sorriso.
E a senhora continuava a sorrir. Ela cortou um pedaço e colocou em um pratinho. Saboreou cada pedaço que pegava com o garfo. Mastigava devagar sentindo o chocolate desmanchar na boca. Bolo de chocolate. Era o seu favorito. Estava muito bom. Eles não paravam de sorrir um para outro. Não lembrava quando foi a última vez que teve tanta facilidade em sorrir assim. Fechava os olhos e mastigava. Lembrava de quando sua mãe fazia um bolo assim. Como ela gostava de agradá-lo. Sem pedir nada em troca.
- Quer mais? – perguntou a senhora.
- Não, obrigado.
- Por favor, aceite. Eu sei que você quer.
- Está bem.
Enquanto comia o segundo pedaço de bolo, ela o olhava. Ela sabia o que estava acontecendo. Era como se tivéssemos uma ligação por causa de um bolo e um sorriso. Era estranho. E foi preciso apenas poucos minutos. Até acabar o pedaço de bolo.
- Obrigado pelo bolo. Preciso ir.
- De nada, querido. Vai com Deus!
Ambos sorriram quando se despediram.

E tudo o que estava dentro dele influenciava o que ele via. E aquela velha melancolia não aparecia. O que você percebe agora que se abriu para um mundo novo de expectativas? Tudo pode acabar quando eu virar as minhas costas e uma bala me atingir. Talvez, tudo mude ou deixe de existir. Isso não importa. Saber que uma pessoa escolheu uma das verdades que brigam entre si como a causa de um disparo é a tristeza que rema a favor da maré. E de uma certa forma, todos ficam marcados. É difícil compreender tudo o que se passa em um piscar de olhos. Mas, o sentimento que o acolhia era tão suave e agradável que morreria feliz. Poderia fazer tudo de mais fantástico sem perceber. Era como estar drogado por uma felicidade sem direção. Uma confusão gostosa de sensações se entrelaçando no momento de uma batida nervosa do coração. Lembrava da primeira vez que se sentiu assim. Quando era mais jovem e conheceu uma garota. Sua relação com ela foi tão intensa, louca e amorosa. Porém, nunca deixou que tudo saísse do seu controle. Presenciava algumas inconvenientes situações. Tentava algumas investidas comuns. Acabava que nada o agradava. E mundo os engoliu. Não lembrava do dia em que tudo isso não fazia mais parte da sua vida e quando ela tinha ido embora. Ele queria se divertir hoje. Conseguiu alguns trocados vendendo poesias no centro com muita dificuldade. Ficou andando pelo centro de manhã até a noite. Em um sol de rachar. Apesar do cansaço e esgotamento, não se intimidou e continuou. Fazer uma coisa desse tipo era bom, por incrível que parecesse. Também era viver a vida. Sofrer com ela. Depois, descansar as pernas e molhar a garganta com uma cerveja gelada nesse calor que não cessa. Parou para atravessar o sinal e viu na vitrine de uma loja, flores expostas. Sabia agora quando que as pessoas reparavam nas flores. E porque elas compravam algumas. Entrou e ficou admirando as dúzias de flores, de narcisos, rosas, margaridas, cravos, tulipas, entre outras. Era difícil escolher. Escolheu uma de cada flor que tinha na loja. Cada uma com um aroma diferente. Era uma maravilhosa mistura. E a cor e o formato das flores se encaixavam em uma sincronia sensual. Percorria seu caminho com o vento sussurrando em seu ouvido. Finalmente chegou em um prédio. Entrou, subiu e depois bateu na porta com o número indicado no papel que segurava. Um garotinho atendeu.
- Oi, sua mãe está?
O garoto olhou para trás e gritou.
- Mãe! É para você! – saiu correndo.
Ficou parado na porta esperando. A ansiedade tomou conta de seu peito. E as pernas tremeram. Ela apareceu. E imediatamente disse.
- Oi. – com os olhos surpresos.
- Oi.
Sem saber o que dizer por um minuto, ele entregou as flores para ela.
- São bonitas. – ela disse.
Colocando as flores no chão, ela o abraçou. Há muito tempo não sentia o aperto gostoso de um abraço. Desfrutava da ternura que surgia com todas as forças que tinha.
- Quanto tempo não nos vemos. – ela disse.
- É verdade. Estive pensando se você não quer beber alguma coisa e conversar. – respondeu.
- É claro.
Ambos sorriram. E foi por esse sorriso pelo qual se apaixonou que tudo o que ele viveu, valeu a pena.

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