domingo, 4 de outubro de 2009

Aquela que nunca foi beijada

Nessa noite, ela ia perder sua inocência. Mas, ela ainda era uma menina. Andava pelas ruas, despreocupada e feliz. Ela tinha apenas dez anos. Segurava o seu ursinho meio sujo e maltratado, único presente do pai. Ela não sabia aonde ia e nem quem ia encontrar. Mesmo assim, andava com aquele sorriso no rosto. Aquela vontade de brincar com tudo que ela via. Garrafas quebradas, camisinhas usadas, maços de cigarro e uma embalagem de chocolate. Havia um homem a seguindo. Ele sentira o cheiro de uma maça nunca comida. O cheiro da virgindade o excitava. Então, ele corria com o desespero em seus olhos, querendo saciar essa vontade. Ele estava ficando louco. Queria satisfazer esse prazer logo. Ele não pensou na garotinha. Depois, não vai mais esquecê-la. E daquela escuridão da rua mal iluminada, ele tapou a boca da menina com uma das mãos e a arrastou para um canto de um beco.
Com a outra mão, rasgou o seu vestido azul com flores vermelhas. Baixou sua calcinha. Ela começou a chorar. Sua maça foi mordida. Ela começou a sangrar. Lutava e tentava se desvencilhar, mas era facilmente dominada. O homem estava arrancado tudo que era dela. Sem olhar para ela, ele a jogava na parede. Com um desespero, ela mordeu a mão dele. Ela começou a gritar. Com todas as suas forças. Alguém tem que me ouvir. Alguém tem que me salvar desse pesadelo. Enquanto o homem ficava satisfeito. Ela já não aguentava mais. E toda a vizinhança acordou. Alguns fingiram que não viram nada. Outros aproveitaram e tocaram uma punheta com essa cena. E o espetáculo tinha que continuar. Alguns riram. Outros gravaram e colocaram no youtube, para outros poderem ver. E a platéia era grande. E o show ficava excitante. Mas, ela era apenas uma menina. Esse foi o mundo que ela conheceu. O homem sumiu. Ela não conseguia parar de chorar. Colocava o vestido azul com flores vermelhas rasgado e manchado de sangue. Ela andava. Ela não sabia aonde ia e nem quem ia encontrar. Ela estava sozinha.
Agora, ela era uma mulher. Já estava crescida e sua fruta já madura. Ela estava nua na cama desarrumada. E a noite vinha mais uma vez. Veio mais uma vez trazer o que ela queria esquecer. Veio invadindo sem avisar, sem mesmo dizer uma palavra de paz. Havia uma fila de homens a sua porta. Ela chamou o próximo. O próximo entrou. Ainda estava de paletó e parecia que tinha vindo do trabalho. E foi tirando a roupa, pois o tempo é o bem mais precioso e ninguém pode perdê-lo, assim tão sem nada mais a fazer. Ela, como sempre, se mostrava na posição de defesa. De quatro na cama. E ficava olhando para o travesseiro. Ele já estava nu e com o cinto na mão, pediu para ela colocar no pescoço. E assim ela fez. Enquanto ele trepava nela por trás, apertava progressivamente o seu pescoço com o cinto. Ela não sentia nada além do aperto no pescoço. Cada vez mais a sufocar. Ele se divertia de estar fazendo algo que o agradava e não olhava para ela. Ele estava montando em seu cavalo nas terras distantes, em um vasto campo verde. Galopava sem parar. E parecia perseguir um ponto cego entre as linhas abstratas dos objetos. Até se convergirem em algo realmente assustador e sair do seu corpo em um gostoso movimento libertador. Ela estava inerte. Não se importava. Só queria que acabasse logo e que a noite fosse curta. Todas as suas esperanças eram de que o tempo passasse rápido e que tudo isso acabaria logo. O cinto saiu de seu pescoço. O homem agradeceu e saiu do quarto. Ela se levantou. E foi para o espelho ver o que sobrou. Era um mostro ordinário, mas doce. A marca roxa no pescoço era nítida. E a expressão do rosto era a de sempre. Ela pegou a lâmina de barbear comprada na semana passada. Mostrou o seu pulso para ela mesma. E queria se cortar toda. Acho que posso começar pelo pulso. Queria virar pedacinhos e se espalhar por ai. Ela tinha raiva. Não a raiva de destruir tudo, mas a raiva de não fazer nada. Deixou cair à lâmina no chão. E tinha que voltar. Chamou o próximo. O próximo entrou. Esse parecia mais desesperado. E foi tirando a roupa. Tinha um espírito agressivo. Era um touro. Ela ficou na posição de defesa. Ele bufava. E a arrastava para todos os lugares, mas ela não sentia nada. Ele começou a dar tapas em todas as partes do corpo dela. Ela não se importava. Ele queria chegar ao seu destino o mais rápido possível, então ele não parava. Essa locomotiva não parava e soltava fumaça. Cada vez mais rápido. Gritos ecoavam pelo quarto. Palavras eram ditas em tons muito altos. Ele olhava para o teto. Estava encontrando. Tudo estava chegando. Era a natureza do homem. Aquela que as pessoas discutem tentando achar um final. Aquela que usam como a causa de todas as nossas verdades. Aquela que explica o que somos. Aquela que dirá para aonde vamos. E na fúria desse ato. Ele, simplesmente, acabou. Ela ficou imóvel. Sem querer, ela adormeceu.
E sem saber porque. Ela sonhou. Havia um homem nesse sonho. Ele sabia o que ela queria. Então, foi se aproximando. Ela notou. E pela primeira vez ficou nervosa. E sem saber como, ela já estava em seus braços. Eles se beijavam. E tudo ficava como uma linda pintura que todos apreciam, mas borrada, riscada e confusa. Estava tudo mudado. E tinha uma sensação gostosa no fundo. Naquele momento, ela não queria que a noite acabasse. E sem nenhuma explicação, ela nadava nos olhos de quem nunca tinha visto nessa vida. Ela sentia que água estava fria. E que batia no seu corpo quente. Misturavam-se. Entrelaçavam-se. Trocavam tudo o que ainda tinham consigo. Ela sentiu o vento batendo no cabelo. Acordou. Estava sempre no mesmo lugar. Ela se levantou. E procurou. E achou. O ursinho, ainda sujo e maltratado, que o pai dera para ela. Abraçou-o bem forte. E com eles nos braços, ela foi até a pequena varando do apartamento e viu o mundo lá fora. Tudo e todos passando. E uma lágrima escorreu dos olhos para o rosto e ela foi caindo até chegar em uma poça de água na rua. Um carro vinha velozmente e jogou a água da poça para a calçada. Ela era apenas uma menina. Ela virou a cabeça e notou a porta. Chamou o próximo. O próximo entrou.

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