quinta-feira, 1 de março de 2012

Nelson e Lígia

As rugas espalhadas pelo o seu rosto denunciavam os antigos desgostos de sua vida. Olhava-se no espelho do banheiro que refletia as lembranças da juventude que não volta mais e das tristezas levadas por sua mão calejada pelas cordas. Inseparável violão estava em um canto do pequeno quarto esperando para ser manejado. Escondia as suas lágrimas debaixo de um semblante alegre, pois a velhice já atacava o corpo e a beleza jovial que as mulheres desejam, e a saudade dos tempos de rapaz sempre lhe magoavam. Sua atenção voltava para o seu braço, uma tatuagem com o nome dela “Lígia”, com uma mão queria arrancá-la do seu braço, feri-la e causar um sangramento na pele e um sofrimento no coração, com a outra queria tocá-la, acariciá-la e se entregar ao acalanto que o nome dela trazia na memória. A tatuagem estava borrada, mas suas letras ainda eram legíveis. Penteava o cabelo virtuosamente, vestia sua roupa mais agradável, passava a colônia mais perfumada e se esforçava para ficar bonito outra vez. Com passos lentos, pegou em cima da mesa seu maço de cigarros, retirou um e pôs na boca, riscou o palito de fósforos e acendeu o cigarro sagrado, continuou sua caminhada para o quintal, sentou em sua cadeira de balanço e deu a primeira tragada daquele dia. Balançava no ritmo da inquietude do raiar de um novo dia.
Diziam que ele sempre se achava uma vítima da vida. Muito pelo o contrário, já havia sido julgado por ele mesmo e culpado era sentença marcada em seus devaneios, carregando toda a culpa que encontrava, sendo dele ou não. Quando tocava nessas divagações sobre sua vida, uma vontade controlada de chorar lhe aturdia os olhos, todo o corpo doía em sincronismo com as poucas batidas de um velho coração. Mais um trago do cigarro e tirava sarro do seu pequeno e pobre jardim, de poucas flores, quase vivas, espinhosas, quase mortas, desprotegidas, implorando o cuidado que ele não podia mais dar. Ria sem gargalhar. Balançava devagar, esperando o que já passou, passar. E as cinzas que se espalhavam eram tudo o que ficava, era o resto de tudo o que foi embora, que se acabou e o abandonou em seu ninho que carinhosamente foi construído para o amor. E das suas amargas lamúrias, reclamava sozinho de uma mulher sem alma, dizendo que tinha sido bom para ela, deu seu nome, passou fome, mas seu peito sempre sangrava na despedida que lhe entregava mais uma ferida. E não conseguia explicar de onde surgia a fé que lhe ajudava a suportar, apenas balançava e esperava uma visita triste da saudade para lhe fazer, enfim, chorar.
Cansou de balançar e se levantou sabendo que tinha certeza de uma coisa: precisava cantar. Foi encontrar com o seu antigo e gasto violão para juntos saírem por ai. E foi para a rua, com um cigarro aceso na mão e um sorriso apagado na boca. Do alto de uma mangueira, foi descendo a rua. Todas as pessoas o cumprimentavam e Nelson retribuía com o seu mesmo sorriso e um aceno de violão. Perguntavam-lhe para onde iria. Sempre respondia: para boemia. Havia marcado um encontro com seu amigo Guilherme que queria lhe mostrar um samba novo, motivo mais do que natural para se tomar umas cervejas. O lugar marcado era o de sempre, Praça Tiradentes, e Nelson já chegou pedindo uma gelada para o calor e para alma. Repousou o violão em sua perna e começou a dedilhar algumas notas para que seus dedos se acostumassem com as cordas. Cerveja na mesa e copo cheio. Tocava a música de sua desgraça, melodia saboreada pela sua dor, sentia pelo sol não poder viver perto da lua, e no final, o último verso terminava com ninguém. Guilherme deu um tapa nas costas do amigo e o cumprimentou, chegando no término da primeira cerveja. Rapidamente apresentou-lhe ao novo samba que tinha composto. Começaram de forma lenta, trocando ideias, porém logo o samba já estava pronto e os dois cantavam como se já conhecessem aquelas palavras desde sempre. Quando vinha uma cerveja, um samba era cantado. Todos eram sambas de amores perdidos, mas que pela transformação de suas histórias em poesias, nunca mais foram esquecidos.
Lígia, com seus passos desconcertados, e sua beleza levada pela impureza das ruas, passava na hora de mais um samba falando da dor, e como também a conhecia muito bem, parou e cumprimentou Nelson e Guilherme, no qual a convidaram para se sentar e tomar uma cerveja com eles. Ela aceitou de bom grado e eles continuaram a lembrar de sambas antigos e a mostrar para os seus ouvidos, e para os dos que passavam, palavras que já foram vividas. De vez quando paravam e conversavam um pouco, mas logo que alguém lembrava de outro samba, não hesitavam em cantá-lo. E foi assim até a noite, quando Guilherme se despediu dos dois e foi embora já muito bêbado. Nelson e Lígia acabaram ficando mais um pouco, apenas conversando, para que o violão pudesse descansar de uma vez. Depois, caminharam pela praça, enquanto falavam da noite de hoje e do dia de amanhã. E o desejo balançava seus corações atordoados, sem rumo, desesperados pelo acalanto que não tinham, mas que queriam um do outro. Sentaram em um banco da praça, pelo alto nível de álcool em seus sangues, sem mais demora, e sem um beijo de boa noite, adormeceram ali mesmo, se amando silenciosamente até que se chamassem saudade.

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