sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Eu estou aqui

“Ele está com um câncer. Está avançado. Acho que ele só tem alguns dias de vida”. Talvez as piores palavras que ela já escutou em toda a sua vida. Não sabia o que fazer, nem o que pensar. O chão desabou. O mundo acabou. Aonde vou me segurar? Em qualquer coisa! Em tudo! Nas lágrimas que não chorei. Na força que finjo ter. Meu irmão. Ele é mais novo que eu. Lembro quando ele quebrou o braço caindo de bicicleta. Corri quatro quarteirões com ele nos braços até o hospital. Sempre disse que ficaria tudo bem. E agora, o que eu digo? Vai ficar tudo bem, digo segurando sua mão. Não somos mais crianças. Mais uma noite fria no hospital. Não consigo dormir. Ele já dormiu. Apenas o observo dormindo. As horas não passam. Mas quando percebo, estou acordando.
- Bom dia, Pedro. Como está se sentindo?
- Estou bem. Então vai me dizer o que o médico disse.
Lembrava das palavras. Uma tristeza profunda aparecia. Mas ela não demonstrava, segurava tudo como podia.
- Ele disse que você vai ficar bem.
- Porque tenho a impressão que você não está me dizendo a verdade?
- É apenas impressão sua.
- Tudo bem.
Barulhos de batidas na porta.
- Deve ser a enfermeira. Vou atender. – diz a irmã.
Fica de pé. Ajeita a saia. Caminha. Abre a porta. É um homem. Um jovem.
- Será que eu posso entrar? – ele diz.
- Claro. Mas quem é você?
- Sou Mateus, amigo do Pedro.
- Eu sou Lúcia. Prazer.
- Prazer.
Mateus entra no quarto. Anda calmamente até Pedro.
- Como está rapaz?
- Estou bem. Daqui a pouco eu saio daqui.
- Espero que sim. Sabe o que você tem?
- Minha irmã não diz. Mas acho que não é nada grave.
Mateus olha para Lúcia. Depois volta o olhar para Pedro.
- Não deve ser nada grave mesmo.


Já era noite. Pedro estava dormindo. Mateus estava de um lado da cama, enquanto Lúcia estava do outro.
- Você não vai embora? – perguntou Lúcia.
- Não, vou ficar aqui essa noite. – respondeu Mateus.
- Será que você pode tomar conta do Pedro, enquanto eu vou ao banheiro?
- Claro, pode ir.
Lúcia pega sua bolsa. Levanta com um pouco de dificuldade. Um cansaço. Caminha devagarzinho. Abre a porta, e depois apenas encosta.
Alguns minutos se passam. Mateus luta contra o sono. A cabeça fica cambaleando. Os olhos fechando. Mas ele fica firme. Lúcia está demorando no banheiro. Mateus se levanta, estica os braços e dá um leve tapa na cara. Vai até a porta do banheiro. Com a mão direita bate na porta delicadamente.
- Lúcia, tudo bem ai?
Silêncio. Outras batidas.
- Tudo bem ai?
Silêncio. A mão vai parar na maçaneta. Gira. A porta é aberta. Lúcia está sentada no vaso. Com uma seringa presa em um dos seus braços. Os olhos de peixe morto fitando o nada.
- Você está bem? – pergunta Mateus.
Ela não responde. Mas olha para ele. Mateus a segura pela cintura e a ajuda a levantar. Lúcia coloca as mãos na pia, que não tem um espelho. Em volta dos olhos, um roxo peculiar. Seu rosto está branco e pálido. Mateus abre a torneira, molha sua mão e passa no rosto de Lúcia. Em seguida, um imenso vomito sai da boca de Lúcia, sujando a pia limpa e o chão do banheiro. Mateus não reclamou, apenas limpou a boca de Lúcia com água.
- Não se preocupe com o vomito. – ele disse.
Lúcia voltou para o seu lugar onde estava sentada. Um pouco melhor agora.
- O que você tem na cabeça? Seu irmão doente e você tomando essas coisas. – diz Mateus.
Lúcia parecia não querer falar, mas essas palavras a instigaram.
- Você não sabe de nada. Você não me conhece.
- Tudo bem, desculpe se eu fui meio rude. – diz Mateus.
- Tudo bem.
- Quer um pouco de água?
- Seria bom.
Mateus rapidamente foi arranjar um copo com água. Em um piscar de olhos, ela já tinha voltado.
- Obrigada. – diz Lúcia.
- De nada. Pedro nunca disse que tinha uma irmã.
- Nós nos afastamos. Mas ele sempre foi tudo o que tinha.
- E seus pais?
- É uma história complicada.
- Entendo.
- Eu e Pedro sempre fomos unidos. Mas eu sai de casa.
- Porque saiu de casa?
- A minha mão faleceu logo depois que o Pedro nasceu. Mal lembro dela. Éramos nós três, eu, Pedro e nosso pai.
- Sinto muito.
- Tudo bem.
Vários goles de água já tinham ido por garganta abaixo. Já dava para respirar melhor.
- Nosso pai nunca se recuperou. Batia na gente sempre que podia. A culpa é de vocês. Ele sempre dizia isso. Transformou sua dor em socos e pontapés. Em quem eu vou descontar a minha dor?
- Espero que não seja em mim. – retrucou Mateus.
Lúcia esboçou um pequeno sorriso, quase imperceptível.
- Então por isso você fugiu de casa. E o Pedro?
- Pedro ficou. Acho que eu não deveria ter o deixado lá. Mas ele seguiu seu caminho. E eu o meu. Agora estamos aqui. E ele está morrendo.
- Morrendo?
- Ele está com câncer.
- Eu não sabia. Não sei nem o que dizer.
- Não precisa dizer nada.
E ficaram calados. Sem dizer nada. Até amanhecer.

Pedro estava olhando para o teto. Imóvel. Lúcia acordou. Não lembrava de muita coisa. Não sabia porque. Observou Pedro. Estava estranho.
- Pedro? – ela perguntou.
Com umas das mãos tocou de leve no corpo de Pedro, mexendo devagar.
- Pedro? Acorda.
Era um corpo sem vida. Ela não sabia. Saiu correndo para chamar um médico. Mateus acordou no susto. Tentou falar com Pedro, mas ele não respondeu. Pedro. Não se vá... O médico chegou no quarto. Logo diagnosticou, e declarou sua morte oficial, fechando os olhos de Pedro. Não dava para acreditar. É difícil de acreditar. Mateus olhou para Lúcia. Ela estava em choque. Correu para Mateus. Jogou-o contra a parede. Começou a dar socos de raiva, mas fracos, no peito de Mateus. Queria quebrar tudo. Os socos foram ficando fortes.
- O que você está fazendo? – perguntou Mateus.
- Ele morreu.
- Eu sei. Sinto muito.
- Você não entende. Deixe-me em paz!
Furiosa se afastou. Mateus tentou se aproximar.
- Não se aproxime de mim.
Mateus tentou tocá-la de novo. Mas ela se jogou para cima dele, o encostando na parede. Outros socos. Gritos. Mais socos. Depois de alguns movimentos bruscos, se abraçaram. A respiração ofegante. O suor caindo.
- Eu quero dizer uma coisa. – diz Mateus.
- O que? – pergunta Lúcia.
- Eu entendo.
Ela parou. A respiração diminui. Era bom o abraço. Sereno e calmo. Tranqüilo. Lembrava da rede, onde costumava deitar, na casa no alto da montanha. O silencio do vento. Então a chuva caiu do céu, formando palavras no chão de lama. Mateus aproximou sua boca do ouvido de Lúcia.
- Eu só queria dizer... Eu só queria dizer que eu estou aqui. Você pode chorar agora.

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