“Ele está com um câncer. Está avançado. Acho que ele só tem alguns dias de vida”. Talvez as piores palavras que ela já escutou em toda a sua vida. Não sabia o que fazer, nem o que pensar. O chão desabou. O mundo acabou. Aonde vou me segurar? Em qualquer coisa! Em tudo! Nas lágrimas que não chorei. Na força que finjo ter. Meu irmão. Ele é mais novo que eu. Lembro quando ele quebrou o braço caindo de bicicleta. Corri quatro quarteirões com ele nos braços até o hospital. Sempre disse que ficaria tudo bem. E agora, o que eu digo? Vai ficar tudo bem, digo segurando sua mão. Não somos mais crianças. Mais uma noite fria no hospital. Não consigo dormir. Ele já dormiu. Apenas o observo dormindo. As horas não passam. Mas quando percebo, estou acordando.
- Bom dia, Pedro. Como está se sentindo?
- Estou bem. Então vai me dizer o que o médico disse.
Lembrava das palavras. Uma tristeza profunda aparecia. Mas ela não demonstrava, segurava tudo como podia.
- Ele disse que você vai ficar bem.
- Porque tenho a impressão que você não está me dizendo a verdade?
- É apenas impressão sua.
- Tudo bem.
Barulhos de batidas na porta.
- Deve ser a enfermeira. Vou atender. – diz a irmã.
Fica de pé. Ajeita a saia. Caminha. Abre a porta. É um homem. Um jovem.
- Será que eu posso entrar? – ele diz.
- Claro. Mas quem é você?
- Sou Mateus, amigo do Pedro.
- Eu sou Lúcia. Prazer.
- Prazer.
Mateus entra no quarto. Anda calmamente até Pedro.
- Como está rapaz?
- Estou bem. Daqui a pouco eu saio daqui.
- Espero que sim. Sabe o que você tem?
- Minha irmã não diz. Mas acho que não é nada grave.
Mateus olha para Lúcia. Depois volta o olhar para Pedro.
- Não deve ser nada grave mesmo.
Já era noite. Pedro estava dormindo. Mateus estava de um lado da cama, enquanto Lúcia estava do outro.
- Você não vai embora? – perguntou Lúcia.
- Não, vou ficar aqui essa noite. – respondeu Mateus.
- Será que você pode tomar conta do Pedro, enquanto eu vou ao banheiro?
- Claro, pode ir.
Lúcia pega sua bolsa. Levanta com um pouco de dificuldade. Um cansaço. Caminha devagarzinho. Abre a porta, e depois apenas encosta.
Alguns minutos se passam. Mateus luta contra o sono. A cabeça fica cambaleando. Os olhos fechando. Mas ele fica firme. Lúcia está demorando no banheiro. Mateus se levanta, estica os braços e dá um leve tapa na cara. Vai até a porta do banheiro. Com a mão direita bate na porta delicadamente.
- Lúcia, tudo bem ai?
Silêncio. Outras batidas.
- Tudo bem ai?
Silêncio. A mão vai parar na maçaneta. Gira. A porta é aberta. Lúcia está sentada no vaso. Com uma seringa presa em um dos seus braços. Os olhos de peixe morto fitando o nada.
- Você está bem? – pergunta Mateus.
Ela não responde. Mas olha para ele. Mateus a segura pela cintura e a ajuda a levantar. Lúcia coloca as mãos na pia, que não tem um espelho. Em volta dos olhos, um roxo peculiar. Seu rosto está branco e pálido. Mateus abre a torneira, molha sua mão e passa no rosto de Lúcia. Em seguida, um imenso vomito sai da boca de Lúcia, sujando a pia limpa e o chão do banheiro. Mateus não reclamou, apenas limpou a boca de Lúcia com água.
- Não se preocupe com o vomito. – ele disse.
Lúcia voltou para o seu lugar onde estava sentada. Um pouco melhor agora.
- O que você tem na cabeça? Seu irmão doente e você tomando essas coisas. – diz Mateus.
Lúcia parecia não querer falar, mas essas palavras a instigaram.
- Você não sabe de nada. Você não me conhece.
- Tudo bem, desculpe se eu fui meio rude. – diz Mateus.
- Tudo bem.
- Quer um pouco de água?
- Seria bom.
Mateus rapidamente foi arranjar um copo com água. Em um piscar de olhos, ela já tinha voltado.
- Obrigada. – diz Lúcia.
- De nada. Pedro nunca disse que tinha uma irmã.
- Nós nos afastamos. Mas ele sempre foi tudo o que tinha.
- E seus pais?
- É uma história complicada.
- Entendo.
- Eu e Pedro sempre fomos unidos. Mas eu sai de casa.
- Porque saiu de casa?
- A minha mão faleceu logo depois que o Pedro nasceu. Mal lembro dela. Éramos nós três, eu, Pedro e nosso pai.
- Sinto muito.
- Tudo bem.
Vários goles de água já tinham ido por garganta abaixo. Já dava para respirar melhor.
- Nosso pai nunca se recuperou. Batia na gente sempre que podia. A culpa é de vocês. Ele sempre dizia isso. Transformou sua dor em socos e pontapés. Em quem eu vou descontar a minha dor?
- Espero que não seja em mim. – retrucou Mateus.
Lúcia esboçou um pequeno sorriso, quase imperceptível.
- Então por isso você fugiu de casa. E o Pedro?
- Pedro ficou. Acho que eu não deveria ter o deixado lá. Mas ele seguiu seu caminho. E eu o meu. Agora estamos aqui. E ele está morrendo.
- Morrendo?
- Ele está com câncer.
- Eu não sabia. Não sei nem o que dizer.
- Não precisa dizer nada.
E ficaram calados. Sem dizer nada. Até amanhecer.
Pedro estava olhando para o teto. Imóvel. Lúcia acordou. Não lembrava de muita coisa. Não sabia porque. Observou Pedro. Estava estranho.
- Pedro? – ela perguntou.
Com umas das mãos tocou de leve no corpo de Pedro, mexendo devagar.
- Pedro? Acorda.
Era um corpo sem vida. Ela não sabia. Saiu correndo para chamar um médico. Mateus acordou no susto. Tentou falar com Pedro, mas ele não respondeu. Pedro. Não se vá... O médico chegou no quarto. Logo diagnosticou, e declarou sua morte oficial, fechando os olhos de Pedro. Não dava para acreditar. É difícil de acreditar. Mateus olhou para Lúcia. Ela estava em choque. Correu para Mateus. Jogou-o contra a parede. Começou a dar socos de raiva, mas fracos, no peito de Mateus. Queria quebrar tudo. Os socos foram ficando fortes.
- O que você está fazendo? – perguntou Mateus.
- Ele morreu.
- Eu sei. Sinto muito.
- Você não entende. Deixe-me em paz!
Furiosa se afastou. Mateus tentou se aproximar.
- Não se aproxime de mim.
Mateus tentou tocá-la de novo. Mas ela se jogou para cima dele, o encostando na parede. Outros socos. Gritos. Mais socos. Depois de alguns movimentos bruscos, se abraçaram. A respiração ofegante. O suor caindo.
- Eu quero dizer uma coisa. – diz Mateus.
- O que? – pergunta Lúcia.
- Eu entendo.
Ela parou. A respiração diminui. Era bom o abraço. Sereno e calmo. Tranqüilo. Lembrava da rede, onde costumava deitar, na casa no alto da montanha. O silencio do vento. Então a chuva caiu do céu, formando palavras no chão de lama. Mateus aproximou sua boca do ouvido de Lúcia.
- Eu só queria dizer... Eu só queria dizer que eu estou aqui. Você pode chorar agora.
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