quinta-feira, 4 de agosto de 2011

A cor da chibata

Do pai. Do filho. Do Espírito Santo. Amém. Aprendera que deveria fazer o sinal da cruz quando Jesus aparecia crucificado. E lá estava ele, pendurado em cima da grande porta de madeira da pequena Igreja já idosa. Caminhava com passos lentos e pesados, com o corpo fatigado e músculos machucados por um trabalho exaustivo, porém se vangloriava por conseguir escapar dele por apenas alguns minutos, sumindo pela mata adentro. Cumprimentou o padre, beijando a sua mão em sinal de respeito para com a religião. Esgueirou-se pelos cantos e entrou na floresta com idéia de que iria descansar um pouco antes que alguém percebesse a sua ausência, pois essa sua pobre displicência seria tratada com severa disciplina. Tocava nas árvores paradas, pois apesar de caladas, elas acordavam junto com o dia. Pisava no chão fofo com os pés encardidos, doloridos, e pensou que já estava na hora de escolher uma árvore, encostar suas costas nela e descansar, todavia escutou, não muito longe, o canto das águas de um rio que caminhava para desaguar no mar, como ele, ou talvez, apenas descansar de sua travessia. De surto, uma energia foi oferecida, e ele a usou para seguir os rastros das ondas de um rio que ele nunca vira. Chegou cantando a mesma música que as águas, que ouvira há algum tempo, da boca de seu mundo, um lugar muito distante.
Seus olhos se assustaram e se arregalaram com a visão de uma mulher, totalmente nua, se banhando nas águas que deveriam ser só dele. Sinhá tomava o seu banho da tarde, pois sua pele não acostumada com o calor do sol, não poderia deixar de ser refrescada a cada gota de suor. Seu corpo de neve derretia e preenchia espaços vazios do rio, empurrava pedras, e ditava o ritmo da correnteza, em sintonia, com harmonia, e da agonia do prazer que ele queria apenas para ele, exaltava o seu próprio corpo feito de terra fértil e febril, onde qualquer semente tímida germinaria, dando frutos doces e flores amargas. E como ele tremia da candura conquistada que violava o cego desejo de seus olhos que no céu encontravam o mar em uma noite quente de verão, e na lua que iluminava tudo ao redor, e faltava coragem para tocá-la com a mão machucada, calejada e ferida pela matéria-prima que o criou. Escondeu o rosto com medo de que ela pudesse corresponder ao olhar mágico que o enfeitiçou, como contavam as velhas lendas que conhecera por saber o seu lugar no mundo. Ela saiu de sua aquarela invisível, deixando as águas reclamarem sua volta, e o percebeu encolhido atrás da mata, com um sorriso o hipnotizou, fazendo com que ele não sentisse saudade de onde veio. O capataz observando toda a cena, agarrou o seu braço com força, derrubando-o com violência, desferindo alguns golpes, e arrastando as suas sobras , o levou embora.
O cheiro, uma mistura de odores fortes, inquebráveis e indômitos de um fedor difícil de descrever por palavras tão futuras, espalhavam-se pelos quatros cantos da casa grande (que fora construída para que o vento frio de um horizonte em chamas pudesse refrescar a mente dos visionários da fortuna), penetrando pelas rachaduras das paredes, nos cantos obscuros e nos quartos fechados. Um perfume mestiço que vinham daqueles que não estavam aqui, nem a liberdade de se ver num pedaço destruído de espelho, atravessava todos os salões e avançava sorrateiro para as narinas do senhor de engenho que cuspia no chão e pensava de onde vinha esse cheiro ruim, tórrida lembrança lhe escapa a mente e suspira pelo milagre de respirar um ar limpo, cercado por milhares de hectares de terra. Caminhos tortos acertados por sua bengala, caminhava para ver o negocio crescer, e somente parava quando enxergasse o seu horizonte (sem fim) construído por suas mãos. Nessa hora, o capataz e a sinhá, se apresentavam e tudo o que aconteceu virava mito. Sabendo de tudo, confiando nos valores (que somente os iguais a ele possuíam) que carrega e que por teimosia de gente velha deveria ser apreendida pelas carnes frágeis de jovens sem razão e sem experiência para conhecer as coisas como elas são. Seu rosto cheio de rugas crescidas com o mundo e sua expressão ranzinza dominava todas as ações rebeldes e controlavam as emoções surgidas do ventre da mãe que abandona sua casa. E sua mão poderosa ensinou o ódio cravado nas entranhas de seus olhos mortais, quando, da súbita raiva, espancou sua filha, que com os olhos inchados se rendia a promessa de apenas chorar pela sua cor.
Com o inferno nas veias, os três foram para o espetáculo da noite. O escravo ia ser castigado. O padre estava presente, com seu olhar indiferente e seus braços cruzados, para garantir que a paixão de cristo fosse realizada aos olhos do senhor. Ordenaram para que a batucada se calasse e que todos estivessem presentes. O escravo pecador já estava preparado, amarrado ao tronco e com as costas vulneráveis. O senhor de engenho pediu a atenção de todos e disse as antigas palavras guardadas na cova de um homem com uma história sem alma, enterradas no profundo solo negro de um cemitério sem memória. Ele (o escravo) sem brilho olhava para estrelas do céu e implorava que levassem o sofrimento imposto por aqueles pés presos ao chão duro de suas carcaças podres e nobres. A rainha da atração, ela (a sinhá), recebeu a sua oferenda, a chibata do capataz. O silêncio se fez presente para que a normalidade se tornasse real e que somente os gritos pudessem ser escutados. No mesmo grito ausente de uma chibata manchada de sangue vermelho puro, nenhum dos dois conseguiu mais aguentar, ela chorava pelo amor, e ele chorava pela dor.

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